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True Story Award 2021

Matança policial em Milagres e a invenção da resistência

On December 7, a criminal group prepared to blow up two banks in the small town of Milagres. Policemen knew about the action and arrived before at the scene. The day dawned with 14 dead, six were hostages kidnapped minutes earlier. The case had international repercussions, which became known as "Miracle’s tragedy". Journalistic investigation in the following months proved and revealed that all the victims were executed by the police, in a disastrous operation driven by the "logic of extermination".

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Na madrugada de 7 de dezembro, um grupo criminoso se preparava para explodir dois bancos na pequena cidade de Milagres. Policiais sabiam da ação e chegaram ao local. O dia amanheceu com 14 mortos. Destes, seis eram reféns sequestrados minutos antes. O caso teve repercussão internacional, que ficou conhecido como "tragédia de Milagres". Investigação jornalística nos meses seguintes comprovou e revelou que todas as vítimas foram executadas pelos policiais, numa operação desastrosa movida pela "lógica do extermínio".

MATANÇA DA POLÍCIA E A INVENÇÃO DA RESISTÊNCIA
(matérias publicadas entre 7 de janeiro de 2019 e 6 de dezembro de 2019)


UM MÊS DAQUELA MADRUGADA

Nenhum Real foi tirado dos bancos de Milagres, mas os saques de armas descarregadas deixaram o centro da pequena cidade, em suas ruas e calçadas, no vermelho. Sangue era só o primeiro de muitos rastros mortais no cenário principal da ocorrência, que hoje completa um mês. Dezenas de depoimentos após, recolhimentos de armas e realizadas comparações balísticas, a Polícia Civil já tem o enredo principal dos crimes iniciados na madrugada daquela sexta-feira, 7 de dezembro de 2018, em Milagres. As forças de segurança monitoravam a quadrilha e se preparavam para frustrar os roubos, mas desconheciam a existência de reféns.
Com prazo inicial de 30 dias vencendo na próxima quinta-feira (10), as investigações, no entanto, seguem mantidas sob sigilo. Um silêncio que só ocorreu após declarações precipitadas do prefeito municipal, Lielson Landim, do governador do Estado, Camilo Santana, e do então ministro da Defesa do Brasil, Raul Jungmann. Em todas elas, o tom de sucesso na cruzada contra o crime, em que Bradesco e Banco do Brasil foram salvos.
Não demorou muito para vir à tona o drama dos sobreviventes: Laurinda, 64, vê a filha Edneide morrer em seus braços, dentro do carro na rodovia, após sofrer tiro que, na mesma sequência, atingiu um dos suspeitos. O marido Fernandes, 62, e outro filho, Genário, 37, presenciam o tiroteio em frente aos bancos. "Vocês mataram minha irmã", disse o rapaz a um policial. Além da cearense Edneide, morreram outros cinco reféns de uma mesma família pernambucana.

"Tive pessoas próximas a mim que também foram vítimas de violência nos estados onde morei e trabalhei, por isso, compreendo toda dor e revolta pelas quais estão passando", afirmou dias após a ocorrência o secretário de segurança, André Costa. É dele, portanto, que as famílias esperam resposta, especialmente após uma obviedade: a cena do crime foi violada pela Polícia Militar, que, por dever, deveria protegê-la até a chegada da Perícia Forense.

“SOCORRER”
As primeiras dez mortes ocorreram entre 2h15 e 2h30, e às 2h50 já haviam sido retirados os corpos. Primeiro, dos cinco reféns, na caçamba da camioneta do vice-prefeito Abraão Sampaio; depois, em ambulâncias, os corpos dos três suspeitos e um quarto ainda com vida. Em depoimento, os 12 policiais do Grupo de Operações Táticas Especiais (Gate), que atuaram diretamente na ocorrência, alegaram a retirada para "socorrer" as pessoas. No entanto, pelo menos um dos adolescentes entre os cinco reféns recolhidos na camionete estava com a cabeça visivelmente despedaçada por um tiro de grosso calibre.
Recolhidas armas, munição e corpos, os policiais ainda ficaram no local, por mais de quatro horas, à espera da abertura das lojas, especialmente as que têm câmeras externas.
Uma semana após os crimes, ainda percorremos as supostas trajetórias de fuga dos suspeitos e ouvimos diversas testemunhas do episódio da madrugada, algumas delas antes mesmo de serem ouvidas pela Polícia. Os investigadores, da comissão formada para dar suporte à "apuração rigorosa", tentam manter o silêncio, mas em Milagres as janelas tinham olhos e ouvidos. E câmeras.
O que inicialmente ficou conhecido como "tragédia em Milagres" teve repercussão na imprensa internacional - publicado nos jornais britânicos The Guardian e Daily Mirror e canais de TV dos Estados Unidos.
O Governo de Pernambuco cobrou esclarecimento do Ceará. Dos seis reféns mortos, cinco eram pernambucanos de uma mesma família. "O que houve naquela cidade foi uma chacina", afirmou Pedro Eurico, secretário de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, apontando despreparo policial. Em resposta, o secretário André Costa prometeu um trabalho "sério, imparcial e técnico" dos investigadores.


DE MÃOS DADAS, REFÉNS ERAM ESCUDO.
Só os gritos de Claudineide,41, além do arrombamento de uma vidraça e dos tiros, rasgaram o som da madrugada em Milagres. Era o desespero diante dos primeiros disparos. Havia poucos instantes, tinha descido do carro com o filho Gustavo e o esposo Cícero, além do cunhado João Batista e o filho deste, Vinícius. Eram todos reféns desde que a Ranger de João Batista foi interceptada na BR 116 por homens que planejavam fazê-los de escudo. Vinda de São Paulo e desembarcando no aeroporto de Juazeiro do Norte com filho e esposo, Claudineide só queria chegar a Serra Talhada (PE). Às 2h, encontravam-se os cinco de mãos dadas, dividindo o medo, a angústia e a missão de ser escudo. Estavam no cruzamento das ruas Padre Misael com José Esmeraldo, esta que dá calçada ao Bradesco.
Uma moradora da mesma região central (identidade preservada) acordou assustada com uma pancada. Era a vidraça do Banco do Brasil sendo estilhaçada como início do ato criminoso. Atrás da família pernambucana, estavam dois homens encapuzados; à frente, o comboio de policiais e um dos suspeitos que é abatido na calçada da Farmácia Santa Cecília. Claudineide grita, e num dos apartamentos em cima da Farmácia, os moradores ouvem e estranham "o que aquela mulher estaria fazendo ali". A família atravessa a rua para subir à calçada do Bradesco e alcançar o poste, mas já é pleno tiroteio.

DOIS MESES SEM RESPOSTAS
Já estão com os delegados os laudos periciais das câmeras, armas e projéteis recolhidos após ação policial no dia 7 de dezembro, durante tentativa de roubo a bancos em Milagres, que resultou em 14 mortos, sendo seis reféns. De posse de novas informações, delegados e promotores da comissão criada para acompanhar o caso estão realizando, durante esta semana, oitivas com testemunhas.
A fase atual é medir a conduta individual de cada agente. Foram aguardados, ontem, policiais militares do Comando Tático Rural (Cotar), mas eles não compareceram. O Cotar esteve na cena do crime após as dez primeiras mortes - nas ocorrências no centro de Milagres estavam 12 policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate).
Passados dois meses do dia que começou conhecido como "trágico", mas que o tempo revelou "desastroso", os crimes em Milagres estão mais cercados de sigilo do que de mistério. O sigilo como uma forma de não gerar ruídos de comunicação de um caso de "grande complexidade", conforme acompanhantes do episódio. Até hoje, o maior ruído veio das próprias autoridades: o secretário da Segurança, André Costa, e o governador Camilo Santana quando, no calor do primeiro dia, destacaram o êxito da frustração: bandidos não conseguiram roubar os bancos. Tudo ganhou outros contornos com o eco da frase "vocês mataram minha irmã", de Genário dos Santos para um dos policiais do Gate, sobre, a irmã Edneide, tomada refém e depois morta.

A reportagem apurou que evidências levam para a confirmação de que boa parte dos disparos que geraram vítimas teriam partido da direção onde estavam os policiais - "é hora de apontar as condutas individuais", disse um investigador. Diante das novidades, as defesas dos PMs partiriam para evitar, ainda assim, a responsabilidade dos mesmos, com base em algumas estratégias: dizer que o local estava escuro, que era impossível distinguir quem era "refém" de quem era "bandido". As roupas que vestiam os reféns (alguns estavam com jaquetas) também dificultariam outro entendimento. Os policiais teriam feito, assim, o "procedimento".
Para o caso de Edneide, a cearense morta com tiro na cabeça enquanto era sequestrada no carro interceptado pelos suspeitos, policiais alegam que, após um refém ter sido colocado no capô do carro, e após ter saído de cima, ficaria difícil acreditar que restariam outros reféns dentro - estavam Edneide e a mãe Laurinda. Isso porque os laudos já apontariam para o disparo feito pela Polícia.
Mas nem tudo se sustenta, conforme outros apontamentos apurados pela reportagem: a área onde a família pernambucana foi morta, no cruzamento das ruas Padre Misael com José Esmeraldo, mantinha iluminação por pelo menos dois postes muito próximos do local.
Rosto limpo
Foi dessa forma que ao menos duas testemunhas viram as pessoas de rosto limpo (enquanto os suspeitos usavam balaclava) dando-se as mãos, denotando que estariam, ali, de escudo. Outras mais, dentro de suas casas, ouviram os gritos de Claudineide, 41, após a primeira sequência de disparos. Não mais ouvidos depois da segunda sequência.
No decorrer das várias oitivas realizadas nesses dois meses, os investigadores quiseram saber por que os corpos foram recolhidos da cena quando havia evidências de que não tinham mais vida - um dos adolescentes, Gustavo ou Vinícius, estava com o cérebro exposto em pedaços.
"Só sei que a culpa não é nossa", disse ontem um dos policiais do Gate, dizendo-se confiante com o andamento das investigações.

A GRANDE REVELAÇÃO: TODOS MORTOS PELA PM
A série de evidências obtidas desde a trágica madrugada de 7 de dezembro, no município de Milagres, colocou os investigadores numa estrada de pouco ou nenhum atalho. Não bastassem os depoimentos de quem presenciou o tiroteio, sobre a ação policial, a confirmação de que projéteis de fuzis atravessaram os corpos dos reféns reafirma o enredo principal já levantado pelos investigadores: os reféns, além dos próprios suspeitos, foram mortos na madrugada pelos policiais militares do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) que tentavam frustrar o roubo aos dois bancos da cidade.
As informações que seguem nesta reportagem são resultado de três meses de apuração, acesso a documentos sigilosos, várias visitas às cenas dos crimes, encontro com diversas testemunhas oculares e outras fontes que direta ou indiretamente acompanham o caso, considerado de "alta complexidade", mais por sua gravidade do que por mistério.
Muitos não querem ser identificados, seja por medo ou por obrigação, em meio ao silêncio das forças de segurança "para evitar pré-julgamentos", disse um policial. No entanto, desde o primeiro registro da ocorrência, consta como latrocínio (roubo seguido de morte) na ficha dos suspeitos presos após a tentativa de furto aos bancos. Alguns deles não possuem antecedentes criminais.
Testemunhas oculares dizem não ter dúvida de que partiram da PM os tiros que mataram os reféns. Com a constatação, pelo laudo de balística, das mortes por tiros de fuzil, tem-se mais um contraponto à, já insustentável, afirmação de policiais de que viram reféns sendo mortos pelos próprios assaltantes. Outra evidência está em documentos a que tivemos acesso e diz respeito às apreensões das armas usadas pela quadrilha, que portava pistola Ponto 40, revólver 38 e espingarda calibre 12mm. Nenhum fuzil.
Os reféns sobreviventes Genário e Fernandes, irmão e pai da cearense Edneide, respectivamente, confirmam, assim como outras testemunhas ouvidas pela reportagem: não houve sequer tempo de disparos dos suspeitos.
Ao contrário do primeiro depoimento de Genário Laurentino, na manhã de 7 de dezembro, em que está apontado "que chegou a ver os criminosos atirando contra os policiais", tal afirmação nunca teria ocorrido, segundo a testemunha. A reinquirição de seu pai, três dias depois por outra equipe da Polícia Civil, já deixava claro "que os policiais atiraram na sua direção na intenção de matá-los, pois foram muitos tiros na direção do declarante e de seu filho".
A família de Edneide, a cearense morta, declarou pelo menos duas vezes aos Policiais civis que os tiros observados, tanto em sua direção quanto na dos assaltantes, vinham dos policiais militares.
Uma ação que começou "surpreendente", seguida de "trágica", "desastrosa" e, após as investigações vem se revelando criminosa.
A OCORRÊNCIA.
A quinta-feira, 6 de dezembro, era o começo do fim. Pelo menos 36 policiais militares, divididos em três grupos de 12, ficam de prontidão em ruas paralelas aos bancos em três cidades do Cariri: Brejo Santo, Missão Velha e Milagres. Tinham motivo: dias antes, escutas telefônicas davam conta de que uma quadrilha interestadual iria atacar bancos na Região.
A Polícia estava no encalço da quadrilha que vinha aterrorizando pelo menos três estados nordestinos. Com a informação, via escutas, da iminência de um novo ataque, a hipótese era de que fossem os mesmos que atacaram a agência do Bradesco em Abaré, na Bahia, em três diferentes momentos: novembro de 2016 e nos meses de junho e novembro de 2018. Grupo interestadual que poderia estar por trás, também, da explosão do Banco do Brasil em Nova Olinda, em julho de 2017.

Em todas essas situações, o mesmo "modus operandi": uso de reféns na madrugada, tiros contra destacamento policial e invasão aos bancos visando chegar aos cofres. O elemento surpresa era o ponto forte dos ataques. Em Nova Olinda, uma adolescente comemorava seu aniversário de 15 anos com amigos na calçada de casa quando foi abordada pelos criminosos.
- O que faz a essa hora na rua?
- Comemorando meu aniversário.
Era só um motivo para usá-la como refém na fuga, sendo liberta com outros moradores quando a quadrilha deixava o centro da cidade.
Fim de ano em bancos do Interior significa cofre cheio, sobretudo com dinheiro de aposentados e servidores públicos. A Polícia Militar sabia disso e queria fazer do fator surpresa o revés dos assaltantes.
Sob o comando do major Antônio Gonçalves Cavalcante, uma equipe de 12 homens do Gate é colocada a postos em carros descaracterizados por trás da Prefeitura de Milagres e em ruas paralelas, todas próximas ao Banco do Brasil e Bradesco, agências vizinhas.
Interceptados
Por volta de 1h30, o motorista Isaquiel Silveira, segue em um caminhão da transportadora FedEx em direção a Fortaleza, com seu filho menor de idade, quando é abordado na BR- 116 por uma camionete S10, já tendo passado 5km da entrada de Milagres. Rendido pelo homem armado e encapuzado, é obrigado a posicionar o veículo atravessado na rodovia. O homem dá um tiro em um pneu dianteiro e, ao dar a volta para acertar o outro, Isaquiel corre para o matagal com o filho.
Pelo menos dois carros do bando esperam os próximos veículos. Quem chegar primeiro vira refém. Surge um Celta preto, dirigido por Genário, que veio com os pais Fernandes e Lurilda buscar a irmã Edneide, vinda de São Paulo.
Numa Ranger, também vindos do Aeroporto de Juazeiro do Norte, estavam João Batista e o filho Vinícius. Os dois foram buscar Claudineide (cunhada de João), seu esposo Cícero e o filho Gustavo. Todos para passar o Natal na casa de João Batista em Serra Talhada.
As famílias são abordadas pelo bando, distribuídas entre quatro carros e levadas para o centro de Milagres, ao encontro dos bancos, da Polícia e da morte. Antes, os sequestradores tentam incendiar a S10 em que vieram para abordar o caminhão, jogando gasolina por cima. Não conseguindo atear fogo no primeiro instante, e na pressa, desistem. Às 2h, os carros cortam o silêncio do centro de Milagres e passam pelos policiais, que aguardam o "momento certo".

A HORA DO ‘AGORA’
A deixa acontece quando todos saem dos veículos, com exceção do Celta, onde estão os reféns Genário e Fernandes. Filho e pai são retirados e ficam sentados na calçada do Banco do Brasil. Dois homens quebram a vidraça da mesma agência e seguem em direção às demais portas. A intenção é colocar a carga explosiva no Bradesco.
Às 2h10, os suspeitos e reféns são surpreendidos com uma sequência de tiros disparados pelo Gate. Os primeiros em direção à entrada do Bradesco, onde os explosivos já eram colocados. As cinco pessoas da família pernambucana são colocadas em fila, de mãos dadas, como escudo de dois assaltantes, no cruzamento das ruas Padre Misael Gomes com José Esmeraldo, muito próximo a um poste.
A PM dá um tiro de fuzil e acerta a cabeça de um dos adolescentes (Gustavo ou Vinícius). Claudineide grita num desespero que é ouvido por diversas pessoas, incluindo as que estão em suas casas (acordaram com a quebra da vidraça do Banco do Brasil, antes do primeiro tiro). Deitados no chão, Genário e o pai Fernandes veem claramente que são pessoas "vestidas normalmente", porque até então só viram os "encapuzados".
Não demora e uma rajada de tiros de fuzil elimina um a um os outros reféns, enquanto os suspeitos, logo de retaguarda, tentavam se esconder atrás de um poste.
Pegos de surpresa e sem conseguir fazer disparos de revide, os assaltantes tentam fugir. Um deles é alvo de um dos policiais posicionados na rua lateral e já cai sem vida. Outro é abatido na frente da Farmácia Santa Cecília.
Outros dois ainda tombam próximo à Prefeitura, e um terceiro conseguiria cruzar a rua, dobrar à direita e invadir a casa de Edilânia, mantendo-a refém com os filhos de um, oito, 11 e 13 anos de idade.
Na BR-116, tentando escapar do tiroteio no Centro, três suspeitos fogem no Celta com Lurilda e a filha Edneide. Ainda pegaram o aposentado Zé Lima, que abriu a porta para ver o que era. Estava ali de escudo, obrigado pelos bandidos a se segurar no capô do carro.
Na casa do Zé, um dos suspeitos segura a sua esposa firme pelo braço e aponta uma arma de cano longo para sua cintura. Ela consegue se soltar e corre para dentro de casa. "Meu Deus, ele poderia ter atirado em mim ali", pensou depois. Tiroteio segue ao fundo.
- Pula, pula!
Era um dos bandidos dizendo a Zé Lima, em cima do capô, que saísse dali. Havia um fotossensor não muito longe, tê-lo em cima do carro não era suspeito, mas evidente.
-Pula!
O aposentado, apenas com um calção de dormir, obedece. "Seja o que Deus quiser". Caiu próximo ao acostamento e ficou imóvel esperando que ali fossem atirar. Em casa, a esposa reza diante de um pequeno altar que tem em casa, pedindo às santas que o marido volte são.
Com as pernas tremendo, o aposentado caminha pela rodovia. Alcança um posto de gasolina. Bate na porta, grita, pede que apareça alguém. Nada. Pega o rumo de volta para a cidade e alcança a casa de um parente. Liga para a esposa, que chora aliviada.
A PM fecha o cerco ao Celta e atira. Edneide, que vinha no centro do banco traseiro, é alvejada com um tiro que atravessa o olho direito. Tem morte imediata. Outro acerta o assaltante que também vinha no banco traseiro. O motorista acelera o carro para furar o cerco, quase atropelando um dos policiais antes de abandonar o veículo e fugir, sendo encontrado mais tarde.

Ainda no mês de dezembro, a reportagem apurou que os corpos de cinco reféns foram empilhados na caçamba do veículo Amarok, de propriedade do vice-prefeito da cidade, Abraão Sampaio. Outros corpos, dos suspeitos dos ataques, foram levados em seguida em duas ambulâncias.
Testemunhas oculares observaram que, uma vez cessados os tiros, não houve verificação de sinais vitais em qualquer das vítimas fatais. Antes do vice-prefeito, chegou ao local o Tenente Georges, secretário municipal de Segurança de Milagres. Um dos policiais havia lhe pedido, minutos antes, que providenciasse veículos para "juntar os corpos". Eram Vinícius com o pai João Batista e Gustavo com os pais Claudineide e Cícero. Depois, os suspeitos
Seria, agora em morte, a segunda viagem de carro que faria na mesma madrugada a família pernambucana após aterrissagem no Aeroporto de Juazeiro do Norte. Na primeira, quando entravam na Ranger de João Batista, Vinícius tirou uma selfie com seu celular e encaminhou para a mãe. Estava feliz de rever a tia e o primo quase de sua idade.
"Chegamos"
O mês de dezembro seria de muita celebração na família. Cleoneide segura o celular do sobrinho e faz a foto do "chegamos", enviada aos familiares pelo WhatsApp. Os dois pais, João Batista e Cícero Tenório, vão na frente conversando. Tem afinidades de assuntos, pois ambos trabalhavam com negócios de produtos eletrônicos - João Batista sempre fazendo as compras em São Paulo, onde já havia morado.
A viagem durou cerca de 50 minutos. Terminaria já passados cinco quilômetros depois da entrada à direita, que dá para Milagres. Até terem que voltar, por ordem de seus sequestradores.
Após o primeiro sorriso, só restou pânico. Chegando ao Centro de Milagres, desceu na Rua José Esmeraldo, próximo ao Bradesco, começando a ocupar uma área quase deserta. As câmeras mostraram sua aproximação.

OUTROS ANGULOS
Um padeiro também observa, sem saber que ali havia reféns, apenas percebendo duas picapes com faróis altos ofuscantes. Ainda viu quatro homens descendo "encapuzados", dois deles com armas na mão, espingardas calibre 12. Ouviu falas nervosas vindas da direção dos carros.
- Mão na cabeça, vagabundo!
Era um dos homens que haviam chegado e ele observava. Assustado, entra na padaria e baixa a porta. Passados dez minutos, ouve a sequência de tiros, que demoraria outros 25 minutos. Logo após, outras vozes: "Foram embora". "Um morreu". Percebendo calmaria, resolve sair para a rua. Era o momento em que policiais colocavam os corpos da família na caçamba da Amarok do vice-prefeito de Milagres


CONTINUAR SEM OS OUTROS

Nada fica no lugar para quem ficou. Continuar a vida após a morte dos outros é também transformar a engrenagem de viver. Cláudia, esposa de João Batista, de Serra Talhada, sabe muito bem. A loja da família, Magalhães Informática, não durou sem seu idealizador. O estabelecimento está fechado, e com ele, os rendimentos se foram.
Informática é um ramo complexo, mas era o negócio de João Batista. Morou um tempo em São Paulo, pegando o jeito de encontrar as novidades tecnológicas. Quando voltou a morar em Serra Talhada, queria abrir uma loja. O irmão Daniel Magalhães pretendia instalar uma de frios. João pergunta, como quem pede, que faça isso temporariamente em casa, para que ele pudesse colocar a empresa de informática. Um negócio que vinha dando bem certo.
Lucro vem depois
"Meu irmão tinha um jeito diferente de fazer negócios. Ele não tinha a preocupação de vender a qualquer custo. Às vezes, chegavam pessoas que você via que eram mais humildes, ele sugeria produtos bons, que atendessem àquela necessidade. Se fosse outro estava preocupado em vender o mais caro, o que desse maior retorno", explica Daniel.
Leia Mais:
João Batista fazia viagens de rotina a São Paulo para trazer novidades. Tinha o apoio de Cícero Tenório que, em 6 de dezembro, chegava no aeroporto de Juazeiro do Norte com esposa e filho.
Também o veículo da família, uma Ford Ranger tomada pelos criminosos durante a tentativa de roubo aos bancos, teve declarada perda total. Além disso, celulares dos reféns ainda estão de posse da investigação, recolhidos que foram para serem periciados.
Familiares de Edneide Cruz, em Brejo Santo, conseguiram de volta o Celta, este usado pelos criminosos, também onde morreram a própria Edneide e um dos suspeitos dos ataques. Mas Genário Laurentino, o irmão, precisou custear desde o reboque na delegacia até os consertos no veículo, que não apagam as marcas da violência: tiros por todos os lados. Pelo menos um dos projéteis furou o tanque de combustível, que precisou ser remendado, demandando custos altos, quase R$ 5 mil. Uma complicação para a família simples de agricultores


DOR E MEMÓRIA EM SERRA TALHADA

Tem coisas que vêm de repente:
- Mamãe, venha cá.
Era Joana Darque chamando Antônia, que estava de joelhos na igreja, às 5h da manhã, em oração coletiva na vigília para Santa Edwirges. Se afasta um pouco até a sacristia.
- Diz, 'Darque'
- Não, venha mais pra cá.
- Diz, 'Darque'.
- Não, mãe...
Mãe sente:
- Minha filha, aconteceu um acidente com João Batista?
Sabia que o filho tinha viajado para Juazeiro, buscar Claudineide, Gustavo e Cícero.
- Foi.
- Oh, meu Deus! Foi velocidade, não foi?
- Não, mãe. Uns bandidos pegaram eles, disse, antes de concluir.
- CADÊ VINÍCIUS? E JOÃO BATISTA? E O PESSOAL QUE VEIO DE SÃO PAULO
- Também, mãe.
Porque "também" vira algum consolo para não repetir a palavra "morreu".
"Acabou-se todo mundo", concluiu Antônia. A mãe de João Batista sai gritando pelas ruas. "Meu filho. Meu neto. Todo mundo".
Toda perda é trágica. Perder alguém numa tragédia é ser refém da surpresa. E a morte matada, não morrida, parece guardar em si uma dor ainda mais precoce. Antônia e Claudia (perderam filhos) tentam entender, mas principalmente esperam que lhe entendam. Cláudia perdeu o esposo, João Batista (filho de Antônia), e o filho mais velho, Vinícius. Sthefany, sua sobrinha, perdeu pai (Cícero), mãe (Claudineide) e o irmão (Gustavo).
A família de Serra Talhada, em Pernambuco, quer saber o que vai acontecer de agora em diante sobre o caso de Milagres. Porque com eles já aconteceu e é inesquecível.
"Tem dias que eu tô ótima, tem dias que tô arrasada", diz Cláudia. No dia em que nos encontramos, em sua casa, estava "mais ou menos". Era 8 de março, dia Internacional da Mulher, uma data sempre comemorada pelo casal desde que eram só namorados, há mais de 20 anos. De receber presentes e declarações do homem que só chamava "minha loira". Nem precisava data, só pretexto. Foi assim mesmo no dia 6 de dezembro, quando João Batista estava certo de ir tarde da noite a Juazeiro buscar Cláudia, sua cunhada, com o marido Cícero e Gustavo, filho do casal.
- Minha loira, posso levar Vinícius comigo? Porque eu liguei pros meus amigos e ninguém tá atendendo
- Pode levar, filho, leve.
A essa altura, João Victor, 10 anos, irmão mais novo, queria ir.
- Não, você vai ficar, porque você vai cuidar de sua mãe.
O menino chorou, depois aceitou. Ainda brincou uma partida de dominó com o pai, a última antes de dormir. A última.
A despedida de casa, Claudia guarda, porque João fitou a esposa e beijou.
-Cê sabe que eu te amo muito?
- Sei. Eu também te amo muito, João.
Cláudia volta da porta e dá um outro abraço.
- João, sabia que eu te amo? Nunca esqueça disso.
- Eu sei.
E foi.
Já passava de três horas da madrugada, Cláudia liga, liga e nada, nada. Dormiu mal, mas amanheceu. Saindo do quarto, a campainha toca. Era Reginaldo, seu cunhado. Ele tinha ouvido falar das mortes, dos nomes, mas foi com um fio de esperança até a casa do irmão, ver se estava dormindo. Cláudia abre o portão, Reginaldo já olha para a garagem vazia e enche os olhos, abraça a cunhada como quem se segura.
- Ô, Cláudia, mataram o galego...
A outra pior notícia de sua vida veio já na delegacia de Brejo Santo. Vinícius não tinha levado documento, o delegado queria ter certeza e perguntou a ela alguma característica.
- É um loirinho de olho verde. E tá com tênis vermelho.
O delegado abaixa a cabeça e sai. Com menos de cinco minutos, vem uma moça e lhe anuncia a morte.
"Foi o pior momento, saber que um filho seu morreu, e da forma como foi".
Essa "forma como foi" que a família queria esclarecimentos das forças de segurança do Ceará, até eles serem informados, pelos próprios meios, que investigadores afirmaram os tiros terem partido dos fuzis.
"A gente não quer punir ninguém, até porque a justiça divina vai tomar conta de tudo, mas a gente quer responsabilizar as pessoas que realmente têm que ser responsabilizadas", afirma Daniel Magalhães, irmão de João Batista. Tenta ser uma peça forte na família já muito unida, e percebe que a tragédia não afetou somente a eles. "Os policiais são pais de família, sei que não estão lá para matar inocentes. Eu acredito na Justiça, acredito no laudo da Polícia, no sistema de inteligência, que é pra isso que serve, proteger o cidadão. Mas não houve proteção em nenhum momento à minha família lá. Não houve disparo de arma de bandido, que a gente sabe. A Polícia não diz, mas a gente sabe".
Por hora, a família segue e espera esclarecimentos. Quando o inquérito for concluído, e a denúncia for apresentada formalmente, pretendem acionar a Justiça, para que o Estado do Ceará faça algum reparo aos que ficaram. A loja da família, Magalhães Informática, no centro de Serra Talhada, está fechada, e não há mais rendimentos dos negócios. Stheferson, advogado da família, diz estar confiante no trabalho dos investigadores.
João Vitor dá forças à mãe, Cláudia, que fortalece Sthefany, a sobrinha que ficou em São Paulo e perdeu pai, mãe e irmão. Quase diariamente, as duas compartilham no WhatsApp a insônia da madrugada:
- Tia, eu tô sem sono.
- Eu também, filha.
- Tia, parece que a gente tá passando por uma provação tão grande que um dia a gente vai ter recompensa, vai ter alguma maravilha na nossa vida. Olha, tia, tem horas que me dá um desespero. Dá vontade de eu ir aí pegar você e o João Vitor e a gente sumir no meio do mundo. Sem destino...


O MEDO DE “SABER DEMAIS”

O peso da verdade dói de diferentes formas para Genário. Perdeu a irmã e a paz. Viu o que não queria, mas não consegue negar o que lhe veio aos olhos. Não bastasse tudo, viu suas palavras no centro de reportagens em todo o País: “vocês mataram minha irmã”. ‘Vocês’ seriam os policiais, os mesmos que minutos antes tentaram lhe matar também, mas só não conseguiram “porque Deus não deixou”, conforme disse um dos PMs em depoimento, por tê-los confundido com os criminosos. As balas corriam a miúdo em sua direção e na de seu pai, Fernandes, enquanto estavam deitados próximo ao Bando do Brasil, de frente para o Bradesco. “Deu pra ver tudo”. ‘Tudo’, agora, tem a ver com os cinco parentes de Serra Talhada feitos de escudo pelos assaltantes.
Do chão onde estava, viu um dos adolescentes ser atingido com um tiro na cabeça: a mulher refém grita. Era Claudineide em desespero. Logo após, vem uma sequência de disparos de fuzis, fazendo toda a família tombar. Enquanto isso, dois suspeitos tentam se esconder da chuva de balas atrás do poste, cravejado com balas e pintado com sangue. No alto, um cartaz pregado anunciando “Hercólubus, o gigante planeta vermelho se aproxima da Terra”. Vermelho ficava o poste. Genário e Fernandes também observaram a movimentação dos policiais para retirar as imagens das câmeras dos estabelecimentos ao redor.
Mas viram que antes de apagar as cenas tentaram as palavras: um dos policiais que atirou contra o Celta preto tomado pelos criminosos teria confirmado para outros que restaram um homem e uma mulher mortos no carro.
— Você matou minha irmã.
No mesmo instante à conclusão de Genário, o PM retira o que disse, agora “não tinha mulher no carro não”.
— Você matou minha irmã.
Sua irmã e os outros. E Genário viu. Fernandes viu. Ficaram com medo, mas não querem recusar o compromisso com a verdade. “Nós somos evangélicos, sabemos que será feita a justiça divina, pois Deus é maior que tudo. Queremos deixar quieto agora. O que tivemos ali foi um livramento grande. Mas na vida a gente tem que ser verdadeiro. Uma criança no meio disso aí, uma mulher, os trajes que eles estavam dava pra qualquer um reconhecer. A parte não estava escura. Aquela área estava toda clara. Dava pra ver bem. Estavam de mãos dadas, andando em fila. E os bandidos por detrás deles”.
O segundo descaminho
Fernandes pergunta a um dos policiais onde estariam sua esposa e a filha. Um dos agentes convida para irem procurar. Entram na viatura e seguem por mais de 20 minutos por estradas carroçáveis. Estavam com os homens que efetuaram os disparos contra eles próprios e os outros. O tempo passava e o grupo rodava entre uma carroçável e outra.
Os ex-reféns ficaram assustados, porque pela segunda vez eram levados para um lugar que não sabiam qual. Dessa vez pela Polícia, aquela mesma que fez tudo o que viu e ouviu. O medo só continuou.
Foram as primeiras declarações de Genário, Fernandes e Lurilda, a mãe de Edneide, que desconstruíram a fala da Polícia: de uma operação exitosa que frustrou ataque a bancos. Não foi bem assim, e desde então o que era trágico virou muito pior
DE MUDANÇA

Pelo menos duas famílias mudaram de casa e de bairro por conta da ocorrência em Milagres. Apuramos suas histórias, com exclusividade, ainda no mês de dezembro. Têm em comum a presença dos suspeitos dos ataques em algum momento da fuga. A primeira invasão deu-se na casa de Adilânia Pereira.
Às duas da madrugada, sem sono, estava de frente para a TV fazendo o crochê para venda. É seu passatempo e renda. Os tiroteios começaram, mas ela achou que fossem fogos. Inapropriados “numa hora dessas”. Abre a porta e já vê um homem entrando na rua, correndo em sua direção. Não deu tempo fechar. O fugitivo (de nome Robson, que depois seria o primeiro capturado) empurra a porta e faz entrarem os dois em casa.
A essa hora, uma das filhas, de 7 anos, grita desesperadamente. Além dela, Adilânia tem um bebê de um ano, uma menina de 11 e um menino de 13. O homem ordena silêncio, e que apaguem as luzes.
— Vão pro quarto!
Robson observa toda a movimentação da Polícia pela janela veneziana. Os PMs vão e voltam na rua em busca do fugitivo. Procuram até nos telhados, e nada.
Uma das irmãs de Adilânia liga para saber se também ouvia os tiros. Tomada de refém, dizia apenas que ‘sim’, enquanto era acompanhada para qualquer lugar que fosse dentro de casa. Quando a PM vai embora, Robson liga para a “mãe”, dizendo que muitos morreram, e precisa de dinheiro para sair.
Quando o dia amanhece, Robson ordena que Adilânia siga até a Lotérica e saque uma quantia com um cartão que lhe entregou. Temendo pelos filhos, a mulher obedece. Passa em frente à cena do crime, vê a movimentação policial. Vai à Lotérica e volta com R$ 340. Entrega a Robson.
— Agora, preciso de uma roupa do seu filho.
Troca-se com bermuda jeans, blusa amarela e chinela marrom do menino de 12 anos. Sai da casa em busca das topics “de linha” que levam a Brejo Santo.
Aliviada, Adilânia corre pra casa da mãe com os quatro filhos e conta tudo. Logo a Polícia é avisada e consegue prender Robson dentro do coletivo na estrada.
A ex-refém é chamada à Delegacia para reconhecer o suspeito. Robson é colocado frente a frente com ela e a mãe, sendo esta encarada por ele. “Deu um medo muito grande. Ele ficou encarando assim, a gente”, disse Terezinha, apavorada e, ao mesmo tempo, aliviada que não fez nada com os netos. “O trauma que fica”
A conta dos mortos
Após os fatos, as versões. Em tese, sustenta-se melhor a que tiver mais evidências de verdade. Ou a depender do peso de quem fala. Quando o saldo parcial já resultava em seis reféns mortos, a preocupação pós-desastre era sobre na conta de quem iriam as mortes dos sequestrados para escudo humano pela quadrilha que atacaria os bancos de Milagres. Se nas primeiras horas ao amanhecer do dia foi apontado êxito da operação policial, porque era essa a intenção primeira, de ser a "surpresa" para criminosos acostumados a surpreender, as narrativas das testemunhas, incluindo os próprios sequestrados, foi um balde de água fria.
A madrugada não acabou, mas o que se disse à noite não se sustentou de dia. Não mais somente pelo que disseram as testemunhas, mas pela subsequente investigação da Polícia Civil. No entanto, em desalinho com evidências apontadas no próprio Inquérito Policial 429/2018, o Ministério Público do Estado do Ceará ofereceu denúncia, em 5 de fevereiro deste ano, apontando 14 latrocínios na conta de nove suspeitos presos de participação na quadrilha. A reportagem teve acesso ao documento, considerado intempestivo por uns e incoerente por outros especialistas consultados e que já é motivo de divergências dentro do próprio Ministério Público. Ele foi oficiado quando ainda era dada prorrogação de 90 dias para conclusão das investigações justamente para apontar, "sem restar dúvidas", a autoria das mortes.
Esta investigação jornalística do Sistema Verdes Mares, que já percorre quatro meses, desde a tragédia de 7 de dezembro de 2018, consiste não somente no acesso a documentos sigilosos e suas diversas informações contidas, mas na busca constante e no acesso direto a pessoas relacionadas ao caso, incluindo testemunhas, o que em várias situações tem proporcionado riqueza de detalhes maior do que constam em depoimentos do próprio inquérito. Temos revelado com exclusividade, desde dezembro de 2018, detalhes da matança. Em março de 2019, trouxemos a notícia de que reféns e suspeitos foram mortos pela PM, fato apontado por testemunhas e confirmado com dados periciais e processuais.

A DENÚNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
De posse das centenas de páginas do inquérito policial que apura as ações decorrentes do ataque a bancos em Milagres, o Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), do Ministério Público do Estado, denunciou nove pessoas por 14 latrocínios. Do Ceará, Cícero Rozelir e Everaldo Moreira; de Alagoas, Girlan Santos, Geronilma Serafim, Jaine Pereira e Denilson Moreira; de Sergipe, Gian Sidney e Robson José; da Bahia, Elivan de Jesus.
De acordo com a denúncia, fazem parte da quadrilha interestadual especializada em ataque a bancos. Para os sete promotores que assinam o documento, seriam, especialmente, os responsáveis diretos pelas 14 mortes em Milagres no dia 7 de dezembro de 2018.
O documento relaciona, dentre outros, o depoimento do major Cavalcante, comandante do grupo de 12 PMs do Gate, tendo dito "que deu para identificar que os acusados usavam fuzis". Do depoimento destacado, o oficial diz que "imediatamente, após o cessar fogo, providenciou um socorro das pessoas alvejadas no local".
Por fim, que as vítimas sobreviventes (Genário e Fernandes) foram "prontamente identificadas como tal pela equipe policial, que verbalizou para que deitassem no chão como proteção". Após enunciar o depoimento, o Ministério Público cita "fuzis" para exemplificar os armamentos de grosso calibre que estariam em posse dos assaltantes.

PRIMEIRAS CONTRADIÇÕES
O depoimento do major Cavalcante, usado para embasamento na peça do Ministério Público é, até para alguns investigadores, a palavra que mais contrasta com as evidências colhidas pela própria Polícia Civil. A primeira delas é que não foi encontrado nenhum fuzil, nem ao menos munição desse armamento de posse da quadrilha. O grupo foi desbaratado: primeiro e segundo escalões mortos e o restante preso. Até a casa que serviu de base para a quadrilha, no município de Barro, tinha cordéis detonantes, armas, munições e equipamentos para arrombamento. O cerco fechou-se, literalmente. Mas nenhum fuzil.
A importância do armamento no caso está em que a Perícia Forense constatou residual de calibre 5,56 (fuzis) nos corpos.
O alegado socorro às vítimas, conforme já revelamos em edição anterior, não ocorreu. Quando chegou ao local o tenente Georges, secretário de Segurança de Milagres, os policiais do Gate pediram que retirasse os corpos. Foi assim que chegou o vice-prefeito municipal, Abraão Sampaio, no seu veículo Amarok branca, e três policiais empilhavam os corpos na caçamba do veículo. Minutos depois, chegaram as duas ambulâncias da cidade para recolher os demais.
Os promotores do Gaeco estavam de posse dessas informações e dos depoimentos dos reféns sobreviventes (Genário, Fernandes e Lurilda) quando estes disseram terem sido os policiais que atiraram contra eles.
O Ministério Público admite não se tratar, na denúncia, de "eventuais excessos ocorridos no contexto da intervenção policial", objeto de outro inquérito, mas baseia-se no enredo dado pelo comandante da ação policial sob suspeição desde dezembro em relação às mesmas mortes em questão.
Os oito suspeitos mortos na ação em Milagres estão na conta de mortos por "intervenção policial", conforme apurou o Sistema Verdes Mares em relação às estatísticas de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI), da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). O mesmo não se diz com relação aos seis reféns assassinados, apontados como vítimas de "latrocínio". Somente essa informação demandaria uma atualização de número para a denúncia oferecida pelo MP, mas já afeta o próprio contexto enredado no documento dos promotores de Justiça.
SSPDS já cita oito mortos por "intervenção policial" e OAB quer dados
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social continua optando pelo silêncio em toda a operação que envolve a possibilidade de erro ou crime por parte da Polícia. O mesmo "cuidado" para não "atrapalhar as investigações" e evitar "pré julgamentos", e apontando para o que seria "um peso e duas medidas", a Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), subseção Ceará pretende entrar com uma representação solicitando transparência da comissão investigadora.
"A sociedade precisa começar a discutir sobre os motivos que levam ao sigilo de certas investigações. E se for verdade que os policiais já estivessem esperando os 'bandidos' chegarem, torna o caso ainda mais grave, pois demanda maior necessidade de equilíbrio na ação tão letal", afirma o advogado Deodato Ramalho, presidente da Comissão, que cobrará dados nesta semana ao Governo do Estado

A INVENÇÃO DA DÚVIDA
Não é necessário se concluir um inquérito para que o Ministério Público possa oferecer uma denúncia à Justiça, desde que as possíveis atualizações, feitas na forma de aditamentos, guardem coerência com o alicerce da peça. Não bastassem evidências da investigação em Milagres apontarem para falhas da ação policial na madrugada, a denúncia do Ministério Público "por 14 latrocínios" desconsidera que ao menos quatro dessas mortes ocorreram horas após a tentativa frustrada de roubo aos bancos, quilômetros distantes da cena inicial. Para estas, nos relatos dos PMs, foi "confronto", no depoimento das testemunhas, evidências de execução.
De qualquer jeito, distante de situação de roubo. Mas nem uma nem outra foram consideradas na denúncia do MP, resumindo todas a latrocínio (roubo seguido de morte) no contexto do ataque às agências do Bradesco e do Banco do Brasil.
De acordo com a denúncia, porque "foram 14 os mortos decorrentes da ação delitiva orquestrada pela organização criminosa, devendo todos os seus membros (coautores e partícipes), em princípio, responder pelas 14 mortes (não importa se de vítimas ou de comparsas; independente de quem puxou o gatilho). São os atos e suas consequências", disseram os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco).
Esta denúncia, de dois meses atrás, vem antes de outra, que ainda é preparada pelo Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc), também do MP, dessa vez sobre a conduta dos policiais na operação.
Para especialistas consultados, uma denúncia antecipada sobre autoria de mortes quando outra denúncia futura poderia apontar para falhas das forças de segurança, parece "ato falho do MP", ou "dentro de uma racionalidade muito peculiar".
Ainda o fuzil
A reportagem apurou que no curso da investigação policial tentou se avaliar a veracidade de dois pontos enunciados nos depoimentos dos policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), elite da PM cearense e diretamente envolvida na operação: de que os assaltantes possuiriam fuzis e atiravam contra os reféns. Além de não haver qualquer evidência nos autos para as duas, testemunhas viram que os tiros partiam de fora da localização dos suspeitos, pegos de surpresa.
"É no mínimo estranho que os suspeitos atirassem contra os próprios reféns que estariam ali justamente para ser escudo. E mais inusitado: fazê-lo antes de os policiais abrirem fogo, ao ponto de eles verem o que ocorre. Gravíssimo, contudo, é quando a fala do policial, contra todas as evidências anteriores, ainda assim é endossada por omissão na peça. O MP é uma instituição séria demais pra manter algo tão insustentável", comenta um advogado especialista em direito penal ao conhecer o documento da denúncia obtida pela reportagem - diante do sigilo judicial, prefere preservar a identidade.
A própria denúncia do MP entende que havia "escudos humanos" e que estes seriam os familiares pernambucanos.
Percebendo inconsistências, também diante dos autos do inquérito a que também tivemos acesso, o especialista reflete sobre o que chama de "suposto e perigoso movimento orquestrado". "O mais sugestivo seria aguardar a conclusão dos inquéritos e então distribuí-los para denúncias".
Já o advogado Stefferson Nogueira, que faz a defesa dos familiares das vítimas de Serra Talhada (cinco dos seis reféns mortos), diz aguardar a conclusão do inquérito, e que a denúncia final guarde coerência com o que foi investigado pela Polícia Civil. A conclusão ajudará na fundamentação do processo que a família pretende mover contra o Estado do Ceará.
Tentamos contato com os promotores de Justiça do Gaeco que assinam a denúncia, mas nenhum quis falar, pelo caráter sigiloso do documento. Reiteramos pedir esclarecimentos sobre as informações que já temos, sem necessitar que elas fossem inicialmente transmitidas, mas a justificativa foi a mesma. O Ministério Público do Estado emitiu nota para explicar a negativa e acrescentou que uma comissão de promotores acompanha as investigações em andamento, "acerca da apuração das condutas individualizadas que causaram diretamente cada uma das mortes no contexto da atuação policial".

PM RECEBEU AS PLACAS
O resultado da operação em Milagres tornou-se mais grave na medida em que houve planejamento. A Polícia Civil de Sergipe, por meio do Complexo de Operações Policiais Especiais (Cope) repassou as informações da chegada da quadrilha para a Polícia Militar do Ceará, incluindo as placas dos veículos Saveiro branca e uma picape L200 Triton. O secretário de Segurança André Costa negou, em entrevista, que a polícia cearense soubesse das placas, mas foi justamente o acompanhamento delas (aliado às escutas telefônicas) que fez a Polícia sergipana contatar a força de segurança cearense para a aproximação da quadrilha.
A partir de 5 de dezembro (a dois dias do ataque), saveiro placa OEP 8836 (já utilizada em outro ataque um mês antes) e L200 placa JUM 4545 (reconhecidamente adulterada) eram monitorados dia e noite pela Polícia - além das escutas telefônicas. A 'deixa' foram os últimos reparos feitos na L200 (roubada 15 dias antes) por José Eraldo (apontado como comandante da quadrilha e morto na ação) em uma oficina situada no Complexo de Taiçoca, município de Nossa Senhora do Socorro (SE).
De lá, chegaram a Itabaiana, onde permaneceram por 20 minutos, passando em Canindé do São Francisco por volta de 10h do dia 5 de dezembro. Na sequência, deslocaram-se para Delmiro Gouveia (AL), ficando estacionados por duas horas. A partir de 13h40, deslocam-se a caminho do trevo Ibó/BA, na divisa com Pernambuco. Dali, a Polícia sergipana não tinha mais dúvidas, o próximo destino seria Milagres.
A lógica do extermínio

Não haveria clamor social, ou questionamento sobre a atuação da Polícia Militar em Milagres se não houvesse reféns, e apenas suspeitos, automaticamente qualificados de "bandidos" fossem mortos. A avaliação é do Laboratório de Estudos e Pesquisa Conflitualidade e Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), e também da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Pesquisadores das duas instituições foram convidados a comentar o contexto em que se insere o caso de Milagres e a constatação foi de consenso: há um modelo ostensivo e letal que opera as forças de segurança no País que não está dando conta do problema, sobretudo ao piorá-lo.
"Quando um policial puxa o gatilho, com justificativa ou não, não está fazendo isso sozinho. Existe uma racionalidade por trás. O que precisa ser feito, e isso em nível nacional, é repensar a política de Segurança Pública. Partimos do princípio de que toda vida tem valor. Ou deveria ter. Infelizmente, o modus operandi e a estratégia de defesa, as mortes acabam sendo justificadas. Na Chacina das Cajazeiras, em Fortaleza, a primeira coisa que fizeram em relação às vítimas foi verificar se tinham antecedentes criminais. Porque, se tivessem, já estaria justificado", explica Rômulo Silva, sociólogo, jornalista e doutorando da Uece. Ele é membro do Covio e diz que, sendo negro e da periferia, carrega também os estigmas sociais.
Mas em relação ao caso de Milagres, cujos detalhes temos revelado nos últimos meses e, inclusive, gerado mal-estar na Polícia Militar e no Ministério Público?
Para o professor e pesquisador Geovani Facó, coordenador do Covio, existe uma lógica de Estado, de poder, "e tudo o que estiver fora dela vai ser compreendido, se não como inimigo, como algo perigoso. Primeiro, criam-se percepções que vão se naturalizando, de classes e territórios perigosos, sobre os quais é preciso o aumento do controle", explica o pesquisador.
MATA E MORRE
Na prática, um controle que começaria pelos 'aparelhos de repressão': "em nome de uma lógica de Estado, o instrumento é a Polícia, e o móvel dessa ação instrumentalizada é a repressão. Nessa lógica, a Polícia é a que mais mata, mas também a que mais morre. E não morrer só em função de estar num confronto bélico, mas em função da carga psicológica que é jogada em cima desses sujeitos, que são os policiais. Eles vão para o front também a partir de um processo de formação cultural e institucional fundamentada na lógica do inimigo".
O especialista em conflitualidade e violência aponta, para tragédias como a de Milagres, uma dualidade: de um lado, investimento em viaturas, armamentos; de outro, falta de qualificação técnica, mas num contexto em que até mesmo os excessos fazem parte de uma lógica de Estado, sobretudo quando há o que chamou de embuste de legitimidade para os atos.
Cada região do País tem suas especificidades, isso deve ser considerado em cada análise sobre o que é feito e o que pode ser mudado. Na violência não seria diferente, mas também tem muito de igual. No Rio de Janeiro, a "guerra contra o tráfico" criou, na visão das forças de segurança, a lógica do inimigo. O risco disso é que chegamos ao nível da intolerância. Em nome de um controle de Estado, as pessoas são julgadas por cor, classe e o com quem anda. Se alguém é assassinado na favela, seja pela Polícia ou não, a ótica é de que merecia. E o que não se encaixar perfeitamente na lógica do merecimento fica na conta dos danos colaterais. Pode ser o caso de Milagres. Mas ainda que não seja, não chega a ser exceção", comenta Mariana Grassi, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp), da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro.

POLICIAIS MILITARES TORNAM-SE RÉUS
O Ministério Público do Estado acolheu, em parte, o relatório policial que investigou a atuação dos militares envolvidos na operação que levou às 14 mortes no município de Milagres na madrugada de 7 de dezembro de 2018. A denúncia, aceita ontem pelo juiz Judson Pereira Spíndola Júnior, da Vara Única da Comarca de Milagres, reconhece que todos foram mortos pelos policiais militares, mas distingue as justificativas: oito suspeitos de assalto teriam sido mortos em "legítima defesa", outros dois foram executados e cinco dos seis reféns (familiares de Pernambuco) teriam sido assassinados em circunstância de dolo eventual, quando não é a intenção direta, mas se assumiu o risco.
Os policiais José Azevedo Costa Neto, Edson Nascimento do Carmo e Paulo Roberto Silva dos Anjos são denunciados diretamente pelas mortes dos reféns Cícero e Gustavo Tenório, Claudineide Campos (pai, filho e mãe, respectivamente) e João Batista e Vinícius Magalhães (pai e filho).
"As imagens da câmera instalada em um estabelecimento comercial na rua José Esmeraldo comprovam que, apesar da condição indefesa dos reféns, os denunciados seguiram atirando contra os mesmos até a calçada da Farmácia Santa Cecília, quando estavam a menos de 10 metros do injustificável alvo", diz o Ministério Público.
Conforme revelado com exclusividade pelo Diário do Nordeste em março deste ano, todos os reféns foram mortos pela PM com tiros de fuzil. Também confirmamos, ainda em dezembro, que policiais agiram na intenção de apagar imagens de câmeras.

Morte da cearense
Nenhum policial, no entanto, foi denunciado pelo MPCE pela morte da cearense Francisca Edneide. Embora a Perícia tenha constatado que o tiro partiu dos policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), o entendimento é de que houve troca de tiros com os ocupantes do veículo em que estavam a cearense Francisca Edneide e a mãe, Maria Lurilda, esta sobrevivente.
Foram denunciadas, no total, 20 pessoas, sendo 15 militares por homicídio qualificado e quatro militares e um civil por fraude processual, pois houve alteração na cena do crime. Entre os denunciados por fraude estão o tenente-coronel Cícero Henrique (ex-comandante do BPChoque), o vice-prefeito de Milagres, Abraão Sampaio e o tenente Georges Aubert, secretário de Segurança daquele município. De acordo com a Polícia Civil, o tenente coronel Cícero Henrique, que estava na saída da cidade dando suporte à operação, surgiu na cena dos crimes minutos após o cessar fogo e liderou a retirada dos corpos e projéteis, bem como a destruição de imagens das câmeras do supermercado Burungandas.
Imagens recuperadas
O laudo pericial que recuperou as imagens apagadas atestou que o disco que continha o registro foi formatado duas vezes entre 6h52 e 7h52 da sexta-feira, 7 de dezembro. As imagens foram apagadas pelos militares Joaquim Tavares de Medeiros e Antônio Natanael Vasconcelos Braga, ambos do Gate. O vice-prefeito de Milagres, Abraão Sampaio, também está entre os denunciados por fraude processual, pois houve alteração na cena do crime, ao retirar os corpos dos reféns na caçamba de seu veículo Amarok, conforme a nossa investigação jornalística revelou ainda em dezembro de 2018.
"As vítimas levadas ao hospital na caçamba do veículo do denunciado já estavam todas mortas, inclusive foram levadas direto para o necrotério, já que apresentavam lesões incompatíveis com a vida, pois provocadas na cabeça", relatam os promotores de Justiça, com base no depoimento do médico plantonista Francisco Erlon Furtado.
O Ministério Público do Estado ainda denunciou por homicídios dolosos diretos dos assaltantes Lucas Torquato Loiola Reis e Rivaldo Azevedo dos Santos. Ambos foram executados por policiais do Cotar em duas diferentes circunstâncias. A execução do suspeito Lucas Torquato, revelada em dezembro pela nossa reportagem, ocorreu na comunidade de Campo Agrícola, quando a vítima já estava rendida e presa na casa de um morador. O seu comparsa, Rivaldo Azevedo, foi levado preso na viatura pelos policiais. Estão enquadrados por homicídio qualificado de ambos os assaltantes os policiais Leandro Vidal dos Santos, Alex Rodrigues Rezende, Daciel Simplício Ribeiro e Fabrício de Lima Silva, integrantes do Policiamento Ostensivo Geral (POG) de Milagres, e os PMs José Marcelo de Oliveira, José Anderson Silva Lima, João Paulo Soares de Araujo, Sérgio Saraiva Almeida, Sandro Ferreira, Diego Oliveira, Alienai Carneiro dos Santos e José Maria de Brito, todos integrantes do Comando Tático Rural (Cotar).
Executado após prisão
De acordo com imagens do circuito interno da delegacia de Milagres, após preso, Rivaldo foi levado ao destacamento, mas apenas PMs teriam entrado no lugar para pegar uma arma. Rivaldo teria indicado o local que serviu de base para a quadrilha na zona rural do município de Barro e, após passar a informação, executado pelos PMs.
"Houve clara execução. O Rivaldo quem levou os policiais até o imóvel. Eles não iriam descobrir nunca onde tinha sido a base da quadrilha", disse um dos investigadores à nossa reportagem.
O MPCE interpretou como "legítima defesa" a ação que levou às mortes dos outros oito suspeitos de ataques a bancos. Embora a desastrosa operação que frustraria o roubo tenha envolvido diretamente 12 policiais do Gate, estes foram divididos em três equipes na madrugada.
A equipe liderada pelo então comandante do Gate major Antônio Cavalcante aproximou-se pela rua Padre Misael Gomes, enquanto a equipe comandada pelo tenente Medeiros aproximou-se pela Avenida Getúlio Vargas; e a equipe comandada pelo capitão Azevedo avançou pela rua José Esmeraldo da Silva. Os confrontos comandados pelas equipes de major Cavalcante e tenente Medeiros foram classificados como legitima defesa, enquanto a equipe do capitão Azevedo executou os reféns


CRIME IMPERFEITO

Todo caminho para apagar um rastro também deixa outros rastros e a Polícia Civil sabia disso. Um dos primeiros passos na investigação era refazer o caminho da Polícia Militar, senão na madrugada dos ataques, logo na manhã que sucedeu. Porque passar algumas horas do dia tentando apagar imagens das câmeras dos estabelecimentos comerciais era revelar que algo elas tinham a dizer. Não adiantaram as duas tentativas de destruir os arquivos com a formatação dos discos rígidos. A imagem do supermercado Burunganda seria reveladora: após todos os suspeitos em cena mortos, ou evadidos, três policiais atiraram sucessivamente de fuzil na direção de cinco reféns, "visivelmente indefesos", feitos alvos a sete metros de distância.
As várias narrativas de alteração das cenas do crime, relatadas nesta série de reportagem meses antes do anúncio oficial, davam uma dimensão do que se supõe atrapalhar investigações. E esse é um dos grandes incômodos da Polícia Civil por o Ministério Público não ter confirmado o pedido de prisão preventiva de 15 PMs: estariam tentando atrapalhar as investigações.
Equipes de policiais civis integrantes da comissão de investigação do caso foram seguidas em diligências entre os municípios de Barro e Milagres, enquanto buscavam as testemunhas para prestarem depoimentos. "Eles se colocavam de forma muito próxima, ostensiva, isso acabava gerando uma situação intimidatória não só para equipe como para as testemunhas, com medo de falar". Mas não teria se limitado a uma aproximação "desnecessária".
De acordo com os investigadores, um homem tentou se passar por advogado de uma das testemunhas durante o depoimento dentro da Delegacia. Não era qualquer testemunha da madrugada dos ataques, mas José da Silva, o 'Dé', testemunha-chave, o homem que, com a esposa e a filha mais nova na porta de casa, recebeu a visita inesperada dos suspeitos do assalto Lucas Torquato e Rivaldo Azevedo Santos na manhã após os ataques. Integravam a quadrilha que tentou roubar os bancos, mas naquele momento eram dois homens se dizendo assaltados e que precisavam de um telefone para fazer ligação. Entre a chamada realizada e os dois se esconderem no quarto (um debaixo da cama), não se passaram mais que dez minutos. Ambos foram rendidos por militares do Comando Tático Rural (Cotar).
- Cadê o dinheiro, vagabundo? Cadê? - indagava um PM.
Lucas foi morto debaixo da cama. No depoimento dos militares, "houve troca de tiros e, no revide, o indivíduo acabou alvejado".
Rivaldo, levado preso, foi retirado com algemas e "sem lesões", mas apareceria morto minutos depois a caminho da cidade de Barro. Mais uma inverídica "troca de tiros".
- Conhece ele?
- Nunca vi
'Dé' nunca viu nem pediu pelo homem que se dizia seu advogado na Delegacia e queria acessar os autos. Depois do episódio, a oitiva das testemunhas saiu de Milagres para o município de Brejo Santo.


A VERSÃO DOS POLICIAIS

Policiais militares que atuaram na madrugada de 7 de dezembro em Milagres falam pela primeira vez desde que foram denunciados por homicídio e fraude processual. No encontro com a reportagem, na presença de um advogado, três PMs dizem só ter agido "dentro da lei", negam alteração na cena do crime e acusam reféns sobreviventes de terem mentido.
Naquele dia, ao tentar impedir o roubo de duas agências bancárias da cidade, PMs atuaram e causaram a morte de 14 pessoas, sendo oito assaltantes e seis reféns. No último dia 20 de maio, a Justiça aceitou a denúncia contra 14 militares por sete homicídios e contra outros quatro PMs e o vice-prefeito de Milagres, Abraão Sampaio, por fraude processual.
Durante a entrevista, os militares dizem ter atirado a longa distância em direção ao poste (ao lado do Bradesco, onde estavam os reféns) porque um indivíduo estaria disparando contra a guarnição, embora dissessem não conseguir vê-lo, "só um vulto" e o "clarão" dos disparos que, segundo eles, seria de fuzis. Também negam ter ouvido gritos de Claudineide (refém morta), alegados por várias testemunhas no inquérito processual.
A vez de falar
"O Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais) só se desloca quando a ocorrência é das mais graves que pode existir", disse um dos militares, para se referir à tropa de elite da PM de que faz parte. Para a entrevista, pediram que seus nomes não fossem revelados, mas reconheceram que os próprios depoimentos seriam sugestivos de identificação, uma vez que o Ministério Público individualiza as denúncias, já fora de sigilo. No encontro, ocorrido em um escritório de advocacia, durante três horas, os militares falaram, com uma bandeira do Brasil e outra do Ceará ao fundo, observados pelo advogado Ricardo Valente Filho, presidente do Conselho da Defesa do Policial da Secretaria de Segurança Pública.
"À medida em que íamos nos aproximando, os tiros eram disparados em nossa direção". O PM narra sua versão sobre como teria ocorrido a progressão, quando as equipes avançam no território com o objetivo de neutralizar forças inimigas.
O "start", início da progressão, teria sido após tiros disparados pelos suspeitos de assalto. Estes estariam em frente aos bancos, e os PMs, às 2h do dia 7, em ruas próximas dentro de carros descaracterizados, porque uma viatura oficial chamaria atenção para o que poderia acontecer, já que "o Gate só se desloca quando é ocorrência das mais graves que pode existir".
Por volta de 23h30 do dia 6, fizeram um reconhecimento da área onde ficam as agências bancárias, oito metros distante uma da outra. Horas antes, ainda em Fortaleza, tiveram a primeira reunião sobre um ataque a banco prestes a acontecer no Cariri, conforme repassou a Coordenadoria de Inteligência (Coin), da Secretaria de Segurança Pública. "Nossa intenção era de captura, de prender aquela quadrilha que já havia causado transtornos em várias cidades" - a última delas seria Abaré, na Bahia, um mês antes, com explosão de banco e fuga, mas sem registros de mortes.
A movimentação do grupo criminoso era acompanhada à espreita pelos militares. "Estávamos usando rádio, não muito, pelo fato de em outra ocorrência que participei o rádio foi rastreado. Ali, estávamos usando o WhatsApp. Uma das equipes informou que os elementos estavam parados em frente ao banco. E ali começaram os disparos. Recordo que as vidraças do Bradesco estavam quebradas, havia o alarme do banco acionado", diz um dos PMs. Teriam, então descido dos carros para o confronto. "O primeiro disparo que dei foi quando o cara atirou em nossa direção, ao perceber o primeiro policial avançar de uma esquina para outra. Quando ele avançou, foi visto. O cara começou a atirar em direção a ele. Eu ia deixar meu policial ser atingido? Não, eu atirei no bandido".
Inimigo atrás do poste
Um dos policiais ouvidos pela reportagem afirma ter atirado em um suspeito a partir da área lateral da Prefeitura. "Eu não gritei 'larga a arma, mão na cabeça, Polícia Militar', porque antes de eu falar ele atira em mim, não só em mim, mas nos meus companheiros. Fui pra esquina (ao lado da Prefeitura), me abriguei, ele atirou, eu atirei nele. O fuzil do (colega) policial deu pane, ele ficou sem condição de reagir e foi para minha retaguarda, tomei a frente dele e continuei atirando no cara que estava atirando na gente".
O militar se refere ao inimigo que, segundo ele, estaria atirando de trás do poste ao lado do Bradesco, onde estavam Claudineide, o marido Cícero, o filho Gustavo e seu cunhado João Batista, com o filho Vinícius. Foram todos mortos com vários tiros, mas, no relatório final da Polícia Civil, não há registros do suposto atirador contra os PMs - não foram encontrados, por exemplo, estojos das cápsulas deflagradas.
"A esquina onde as pessoas foram atingidas estava obscura. Eu tinha pouca visibilidade porque, além de estar escuro e chovendo um pouco, estava serenando, a fumaça do Bradesco ocupava toda a esquina". Questionado sobre o por quê de atirar, já que não via, o PM explica: "o cara atirou em mim e eu pude ver, vislumbrar aquele vulto atrás do poste. Não conseguia enxergar por causa da fumaça. Eu via o clarão da arma naquele momento e atirei lá".
Um dos policiais afirma que o suposto atirador estava de pé, mas diversas marcas de tiros na parte mais inferior do poste denotam, para a Polícia Civil em relatório final, para alvos deitados no chão.
Os três policiais entrevistados foram unânimes em negar que houvesse gritos de Claudineide. Várias testemunhas ouvidas no processo (tanto reféns sobreviventes quanto moradores vizinhos aos bancos) afirmam ter ouvido gritos de uma mulher. "Se alguém tivesse gritado, tivesse visto, acenado, nós temos rádios, teríamos com certeza avisado". Outro complementa: "a pessoa, dentro de sua casa, não tá vendo nada, não podia ser um grito de um vizinho?".
"Eles mentiram"
Reféns que sobreviveram e testemunharam a cena na frente dos bancos, Genário e seu pai Laurentino Fernandes afirmaram em depoimento que os policiais chegaram atirando. Os disparos teriam ocorrido, inclusive, na direção deles. Os militares negam: "eles foram identificados como vítimas e retirados da linha de tiro. Eles mentiram".
Já passava de 2h30 quando, da esquina da calçada da Farmácia Santa Cecília, os militares olham para a outra esquina em que fica o poste, oito metros distante, e a constatação: "quando cheguei, identifiquei aquelas pessoas, identifiquei logo a mulher. Vi um adolescente, e um senhor respirando. Então as pessoas não estavam mortas. Havia gente viva ali". Outro complementa: "Não sou médico, sou policial há 22 anos, mas sei identificar quando a pessoa está respirando ou se mexendo. E se ela apresenta algum sinal vital, era até vital que fosse resgatada".
As imagens das câmeras revelam que, entre a chegada dos PMs à esquina em frente ao poste (por volta de 2h40, portanto, a constatação da presença dos reféns atingidos e possíveis sinais vitais), e o suposto socorro prestado às vítimas na caçamba da Amarok do vice-prefeito, Abraão Sampaio, que chegou às 3h17 e saiu às 3h24, passaram-se mais de 40 minutos. O Hospital Municipal de Milagres fica a 400 metros da cena do crime, ou apenas dois minutos de carro. O PM afirma ter ligado, antes da chegada do vice-prefeito, por três vezes ao serviço 190.
Francisco Erlon, o médico que estava de plantão na unidade hospitalar, afirmou em depoimento que as pessoas que chegaram na caminhoneta já estavam todas mortas, pois nenhum deles foi levado para o atendimento, e sim direto para o necrotério. "Que não chegou a examinar, mas só de olhar viu (que) as lesões eram incompatíveis com vida", diz no documento.
A morte dos seis reféns abalou os policiais, conforme relataram. "Eu atirei naquele poste. Se eu acertei aquelas pessoas, eu não sei, porque eu não as vi, e não atirei nelas. Se eu matei aquelas pessoas peço perdão a Deus todo dia por essa possibilidade", diz, em outro momento acrescentando que "até hoje eu faço acompanhamento psicológico. Até hoje choro quando olho meu filho e lembro do rapaz de 14 anos de idade morto na minha frente, no hospital, quando a gente tentou socorrer".
Ao mesmo policial é perguntado se mudaria a postura, diante do ocorrido. "Eu pensaria muito mais antes de efetuar qualquer disparo. Eu olharia, observaria ao meu redor de uma forma mais cautelosa. Talvez cinco segundos antes de efetuar o primeiro disparo eu tivesse visto, olhado no local um pouco mais eu teria enxergado alguém". E discorda, mesmo assim, que possa ter errado. "Não posso dizer que houve falha. As consequências da ação não foram as melhores, porque ninguém quer que inocente morra. Os procedimentos adotados foram todos coerentes com o que nós treinamos

 

EVIDÊNCIAS QUE NÃO FALTAVAM
Tiros certeiros fizeram tombar quatro suspeitos de assalto. Os reféns João Batista, Vinícius, Cícero, Gustavo e Claudineide correm para se esconder dos tiros da PM no poste de luz ao lado do Bradesco. Deitam próximos à calçada. O que não atingiu o poste foi direto para a cabeça e outras partes dos corpos dos reféns. Às 2h36min58s, câmeras da Farmácia Coelho e do supermercado Burundanga mostram a composição liderada pelo capitão Azevedo disparando na direção da família. Os militares seguem avançando, até ficarem na distância da largura da rua estreita. Não mais que sete metros separavam os reféns dos fuzis. A equipe do capitão Azevedo vinha de outras ruas, conforme já estava planejado no grupo do WhatsApp criado horas antes para a operação: 12 homens divididos em três equipes avançariam para a frente dos bancos de diferentes ruas.
A equipe de Azevedo entrou pela rua Abílio Cruz, dobrou à esquerda na Rua Joaquim Furtado, entrando à direita pela rua Almir Braga até a Prefeitura. A essa altura, os suspeitos do assalto estavam em movimentação na frente das agências. A rua continua, com o nome de Esmeraldo da Silva. Pronto: já estão no raio da cena principal do crime. Com o cabo Costa na retaguarda, capitão Azevedo, cabo Silva e sargento Carmo tinham possibilidade de disparo à frente. A equipe vê duas caminhonetes paradas na frente dos bancos e o sistema de fumaça do Bradesco acionado.
Equipe avança
Azevedo ordena a Silva que avance até uma árvore na praça da Prefeitura; no mesmo instante, o capitão vê o veículo Ranger (pertencente à família de Pernambuco) sair do local. Na esquina da Farmácia Santa Cecília, um dos suspeitos é morto por outra equipe, a do major Cavalcante. Um outro suspeito de assalto teria aparecido atirando pela retaguarda da equipe de Azevedo. Costa, então, atira, mas o homem foge. Ainda seguindo pela rua, a equipe vê um dos assaltantes com lanterna na mão - ele já tinha se afastado dos bancos após os primeiros disparos. Era Claudervan Santana de Araújo, que morre entre dois canteiros de flores, na frente da Prefeitura.

Militares do Gate disparam a poucos metros dos cinco reféns que tentam se esconder atrás do poste na lateral do Bradesco. No momento, os assaltantes já tinham sido alvejados ou fugido, e não havia mais confronto
Não mais que dois minutos antes de matar todos os reféns, capitão Azevedo e equipe avançam pela calçada da Farmácia Coelho. Uma das câmeras mostra o oficial disparando na direção dos cinco reféns. As pessoas, poucas horas antes saídas do Aeroporto de Juazeiro do Norte, vindas de São Paulo para Serra Talhada (PE), estavam com roupas comuns e cara limpa, enquanto todos os assaltantes estariam encapuzados. "Não havia mais assaltantes vivos na cena do crime", aponta o relatório da Polícia Civil, ainda enfatizando que "no momento em que a equipe chega à posição dos disparos, a situação de confronto inexistia". Mesmo assim, insistiu em disparar na direção do poste
2h40: várias composições começam a chegar para dar apoio na localização e prisão dos demais integrantes do grupo que fugiram.
3h04: chegada do carro do tenente Georges, secretário Municipal de Segurança em Milagres; 3h11: Abraão Sampaio, vice-prefeito, chega em seu veículo Amarok.
O relatório diz que tenente-coronel Henrique e o tenente Georges, com o vice-prefeito Abraão Sampaio, atuaram "no intuito de desconfigurar a cena do crime, no afã de dificultar o trabalho investigativo, uma vez que era perceptível, desde o início, que ali havia acontecido uma tragédia: vítimas reféns foram mortas pela ação policial".

Os embaraços teriam se seguido. A guia recebida do Hospital Municipal de Milagres informava que as mortes dos reféns (incluindo Edineide, morta dentro do Celta da família tomado pelos assaltantes em fuga) teriam se dado uma hora e 20 minutos após a ocorrência. A Perícia contesta, "uma vez que pelo aspecto externo do corpo, com grau de destruição da calota craniana encontrado, não se permite duvidar que o corpo tivesse sofrido morte instantânea mesmo a um leigo". Esperavam, menos ainda, essa sugestão de 'socorro' vinda do médico e vice-prefeito, que desde então afirma ter agido no intuito de socorrer as vítimas.
"Excludente de ilicitude"
O advogado Ricardo Valente Filho, do Conselho de Defesa do Policial no Exercício da Função (CDPEF), da Secretaria de Segurança, defende que a ação policial configura excludente de ilicitude. "Os policiais estavam de serviço. No cumprimento do dever legal. Foram recebidos a bala, precisavam agir". Sobre a situação dos reféns pernambucanos, Ricardo afirma que "elas não gritaram, não pediram socorro, não acenaram, sem comunicação verbal ou visual"

CENÁRIO ALTERADO

Câmera do supermercado Burundanga, 5h06 da manhã de 7 de dezembro. Dois policiais fardados caminham pela calçada de lojas e residências, a mesma em que, uma hora e meia antes, a equipe comandada pelo capitão José Azevedo realizava a progressão e disparos até encontrar os reféns caídos ao lado de um poste. (veja no vídeo acima)
De acordo com o inquérito policial, os homens recolhem objetos do chão da calçada na Rua José Esmeraldo da Silva próximo à Farmácia Coelho, nas redondezas do ponto onde fizeram os disparos, revelados em outro vídeo. As imagens, que mostram os disparos dos PMs na calçada e posterior recolhimento de objetos no chão, são as mesmas apagadas do circuito de segurança do supermercado e, semanas depois, recuperadas pela Perícia Forense. De acordo com o inquérito, tais imagens foram apagadas pelos militares.

Em depoimento, o proprietário do estabelecimento confirma que foi procurado pelos PMs sobre as imagens das câmeras e, em seguida, pediu ao filho que os acompanhasse até o escritório, no pavimento superior, de onde teriam acesso aos arquivos.

De acordo com os peritos, os arquivos recuperados haviam sido apagados por duas vezes, sendo extraídos exatamente os horários que coincidiam com ocorrência, do início dos disparos até a chegada de dois militares à frente do estabelecimento, em diálogo com o possível proprietário.

"Não restam dúvidas", diz o inquérito policial, "que a operação policial fugiu ao controle, ocasionando a morte de reféns. É notório, por ocasião de vários depoimentos das testemunhas arroladas, da análise das imagens das câmeras de segurança e laudos periciais relacionados aos autos que os doze policiais do Gate, após perceberem a tragédia, começaram a praticar atos objetivando apagar os rastros da operação, recolhendo os corpos das vítimas e dos assaltantes, sem qualquer indício de que estivessem vivos (exceto um dos assaltantes, que foi socorrido com vida), além de estojos ejetados pelas armas quando dos disparos. Não bastassem essas ações, ainda formataram o HD do DVR do sistema de câmeras de segurança do Supermercado".

"A Perícia foi muito feliz nesse ponto, porque conseguiu identificar que algumas imagens haviam sido apagadas e foram reconstruídas, o que não foi esclarecido, e vai ser no momento oportuno dos autos, é se foram os policiais que fizeram isso. Ninguém sabe ainda quem mexeu nesse sistema de câmeras", defende Ricardo Valente Filho, presidente do Conselho de Defesa do Policial no Exercício da Função da Secretaria da Segurança Pública.


UM ANO DA MADRUGADA

A presença de reféns mortos na cena de Milagres, muito mais do que mesmo as já conhecidas ilicitudes e excessos contra suspeitos rendidos (foram executados), criou um peso jurídico maior, que os policiais estão tendo que enfrentar neste um ano desde a matança.
Nos últimos meses, advogados de defesa entraram com diversos recursos para que eles possam voltar à atividade. A Justiça tem negado até o momento. Em cada decisão, o juiz Judson Pereira Spíndola Júnior, da Comarca de Milagres, mantém a "proibição de realização de serviço externo ou ostensivo e de participação em operações policiais".
>Ataque planejado
Em alguma das peças de defesa, como é o caso do tenente Georges Aubert, secretário municipal de Segurança em Milagres, chega-se a pedir a absolvição do réu, alegando incongruências no inquérito da Polícia Civil para responsabilizá-lo por fraude processual. Georges Aubert é defendido pela Associação das Praças do Estado do Ceará (Aspra-CE), que pede o declínio de competência da Justiça comum para que seja julgado pela Justiça Militar.
Primeiro a chegar à cena após o cessar fogo, ele depois estaria no carro dirigido pelo vice-prefeito Abraão Sampaio com os corpos de cinco reféns na caçamba até o hospital, sob a justificativa de socorro às vítimas. A informação (socorrer) foi a mesma dada pela defesa do vice-prefeito, que pede a retirada de sua citação.
Ao dizer que houve tentativa de socorro, as defesas dos réus subtraem uma informação considerada muito relevante pela equipe de investigadores da Polícia Civil: entre o cessar fogo, com a constatação de que havia reféns, até o suposto socorro às vítimas se passaram mais de 40 minutos - o Hospital Municipal de Milagres fica distante apenas três quarteirões da cena do crime.
"Não havia qualquer possibilidade de vítima com vida", lembrou o promotor de Justiça Muriel Vasconcelos. Até mesmo a equipe médica de plantão no hospital sequer precisou avaliar a entrada das vítimas, que estavam "visivelmente sem vida", conforme o médico plantonista.
No último dia 26 de novembro, em nova decisão, respondendo a pedido dos militares por mais perícia, a Justiça manteve os afastamentos das ruas, mas solicitou oitiva do Ministério Público, para que responda a possíveis ausências de evidências que apontem diretamente a responsabilidade tanto em fraudes processuais quanto mortes por intervenção policial.