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True Story Award 2021

"O que eles deixaram no manicómio I"

Depois de entrar no manicómio, Leopoldina nunca mais terá tocado nos seus objectos: no carimbo, nos óculos, no crucifixo com a cara de Jesus gasta e nos seus “vários papéis”. A sua vida mudou quando um dia dormia. Passavam 15 minutos da meia-noite.

É provável que o bilhete de identidade que Leopoldina de Almeida tirou quando tinha 42 anos, e que teve de entregar mal foi internada no “Manicómio Bombarda”, tenha sido o seu primeiro documento de identificação. Não existem registos anteriores e, no ano em que foi emitido, em 1931, só era obrigatório em Portugal há cinco anos — tinha a forma solene de um livrinho de seis páginas de capa dura, forrado a pano vermelho-vivo. Quando Leopoldina o tirou, talvez não lhe passasse pela cabeça que este seria também o seu último bilhete de identidade. Não se esperaria que fosse.
No bilhete de identidade de Leopoldina, válido por cinco anos, chama a atenção o facto de a fina lombada ter sido cosida à mão com linha preta e grossa. Talvez a costura tenha sido a única razão por que não se desmembrou e aguentou todo o tempo em que o transportou, mesmo naqueles que terão sido os mais duros anos da sua vida. Pelo menos o tempo de vida que passou fora do manicómio.
Em Julho de 2011 saíam do primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda, em Lisboa, os seus últimos 24 doentes, que o habitavam há uma média de 40 anos. O despovoamento definitivo do espaço hospitalar de 4,4 hectares, no interior recôndito da cidade, punha fim a 163 anos de história. Representava também o fim simbólico da “era do manicómio” no país, como lhe chamou o historiador Edward Shorter: um tempo em que o confinamento surgia como a primeira resposta para lidar com a doença mental.
Mas aqueles 24 homens e mulheres não foram os últimos a deixar o hospital. No sótão do edifício principal ficou ainda, durante alguns meses, uma banal caixa de cartão que, pelo aspecto velho e mal cuidado, bem podia conter apenas lixo. Era lá que se encontravam vários objectos de antigos doentes. Nunca reclamados.
No tempo de Leopoldina de Almeida, tirar uma fotografia, ter um bilhete de identidade, era especial. E isso nota-se na sua fotografia tipo passe. Leopoldina tem o ar composto de quem se preparou para o momento: posa com um ligeiro sorriso compenetrado e confiante; escolheu uma camisa com decote discreto em vê e um casaco que parece de fazenda; tem o cabelo pelo pescoço, não se percebe se está cortado assim, à moda da época, ou se está preso atrás; tem as sobrancelhas trabalhadas em forma de acento circunflexo; usa dois pendentes de pérolas, provavelmente falsas, que lhe alongam o rosto e lhe dão um aspecto elegante.
Quando foi medicamente dada como louca, a 7 de Abril de 1942, Leopoldina terá sido despida da sua roupa, separada do seu bilhete de identidade e dos seus outros pertences. A “enferma” nunca mais se terá revisto como aparecia nesta fotografia: o seu rosto de mulher elegante quando andava pelos 40 anos. Nem nunca mais terá tocado nos outros objectos que restaram de si dentro da caixa de cartão: no carimbo, nos óculos, no crucifixo com a cara de Jesus Cristo desgastada, no molho de quatro pequenas chaves. E nos seus “vários papéis”, como genericamente ficaram inventariados.

“No profession”
No tempo de Leopoldina, em que poucos podiam viajar, o bilhete de identidade da República Portuguesa dava-se ao trabalho de ser multilingue: tinha um campo para a profissão e a sua surge, em português, como “doméstica”, palavra que o Arquivo de Identificação traduziu, em francês, para “sans profession” e em inglês para “no profession”.
Leopoldina tinha opinião diferente. Nas margens do documento de identidade carimbou: “LEOPOLDINA D’ALMEIDA MODISTA, LEOPOLDINA D’ALMEIDA MODISTA”. Duas vezes. Todas as letras do carimbo em maiúsculas.
Este dado novo — que Leopoldina se via como modista — vem dar outro significado ao seu bilhete de identidade, à forma como a lombada foi costurada à mão. Mostro-o a uma costureira que me diz que o ponto que escolheu se chama “de chuleio”, são pontos dados em ziguezague a espaços regulares, normalmente na beira de um tecido — para evitar que este se desfie.
Terá cosido o documento com estes seus óculos? Tal como fez com o bilhete de identidade, Leopoldina também lhes tentou prolongar a vida: envolveu a zona de junção dos aros com as hastes com linha de costura castanha, para assim reforçar os dois pequenos parafusos de união. Usou a mesma cor dos aros, talvez para que o reforço passasse despercebido.
O carimbo que usou para marcar o seu bilhete de identidade também ficou “em depósito” estes últimos 77 anos. É um objecto pesado, fica melhor de pé do que tombado, como o encontro, como que dizendo que é essa a sua posição natural. Pertence a uma mulher com profissão, num tempo em que a maioria das mulheres não a tinham.
Leopoldina não era cerzideira (como se chamavam às mulheres que apenas passajavam meias e faziam remendos), Leopoldina não fazia arranjos de roupa, Leopoldina não era costureira — Leopoldina via-se como modista, enuncia Maria João Martins, jornalista e investigadora da história social da moda. “Há uma hierarquia.”
“Máquinas de costura dos melhores fabricos a preços módicos. A prestações e afiançadas”. Desde o primeiro número, em 1912, que o Modas & Bordados, suplemento de “Vida Feminina” do jornal O Século, trazia um anúncio destes.
Desde finais do século XIX que a máquina de costura, as Singer eram as mais populares, funcionava como instrumento de emancipação feminina, explica a investigadora. Era uma forma de a mulher poder ter um rendimento próprio e ganhar alguma independência, confeccionando vestuário, muitas vezes a partir de casa. Ia-se à modista para tentar replicar a moda francesa, figurinos e moldes retirados da Modas & Bordados.
“Em Portugal, o pronto-a-vestir só se democratiza nos anos 60. Até lá, o vestuário era todo muito artesanal”, diz. Mas só as mulheres com mais jeito e confiança nas suas capacidades se abalançavam a ser modistas, fazendo vestidos, calças, ou o mais ousado, vestidos de noiva, nota.

Menos sete centímetros
Maria João Martins olha para a fotografia tipo passe de Leopoldina de Almeida: “É uma mulher de aspecto cuidado, sobrancelhas trabalhadas, elegante, alta para a época”. O bilhete de identidade dá-a como uma mulher de 1,65 metros.
Mas, quando entra no manicómio, em 1942, medem-na de novo e fica-se pelos 1,58 metros. Desconhecemos se os 11 anos de vida que, entretanto, passaram encurvaram Leopoldina, comendo-lhe sete centímetros, ou se foi mal medida.
Sabendo que se via como modista e que estaria atenta à moda, pergunto-me como estaria vestida abaixo do pescoço. A Modas & Bordados do mês em que é emitido o seu bilhete de identidade, Setembro de 1931, prescreve já saias a três quartos. Já, porque tinham começado a subir no início do século XX, e os tornozelos femininos já se usavam, modernamente, à mostra; talvez calçasse sapato de salto com presilha dupla, como estava em voga esse ano. Talvez vestisse camiseiro e o seu casaco de fazenda fosse justo na cintura com casas verdadeiras e abotoado sobre a esquerda, como era “chique”. A saia talvez fosse das cingidas ao corpo, o mais natural é que tivesse sido feita por si, e talvez terminasse com pregueados, ou plissados, como era moda.
Os brincos de pérola que usa na fotografia seriam falsos. Diz o suplemento que “as jóias modernas são indispensáveis à elegância feminina”, mas que “não importa a autenticidade, o bom gosto tem primazia sobre o valor”. Quando entra no manicómio, Leopoldina já não traz as pérolas.
No “Manicómio Bombarda” não há moda. Da Modas & Bordados passo para fotografias do interior do hospital ao tempo em que Leopoldina já lá estava. Desde a sua fundação, em 1848, terão sido internadas no hospital mais de 66 mil pessoas, estima Pedro Cintra no livro Miguel Bombarda - Preservar a Memória. Nalguns períodos da sua história, houve interesse em fotografar alguns doentes individualmente.
De mulheres, restaram três álbuns: o Fotografias Mulheres n.º 1 a n.º 30, o Fotografias Mulheres n.º 31 a n.º 60 e o Fotografias Mulheres n.º 61 a 90. Escrutino cada retratada, acreditando que, de tanto ter observado o seu rosto na casa dos 40 anos, o conseguiria reconhecer com 50, 60, 72 anos. Mesmo que agora Leopoldina seja uma destas mulheres de ar andrajoso e miserável, com uniformes escorridos de riscas verticais, que apenas se distinguem dos masculinos por terem golas arredondadas que fazem lembrar bibes infantis. Leopoldina podia ser a mulher 53, mas chamava-se Josefa. A 62? Não, o seu nome era Elisa, e a 64 também podia ser Leopoldina já muito envelhecida, mas era Mercês.
Estas imagens de mulheres são o negativo da fotografia tipo passe de Leopoldina, de alguém que escolhe apresentar-se ao mundo bem arranjada. As mulheres 1 a 90, alguma delas fotografadas nuas, de frente e de perfil, são a imagem do descuido e da negligência, surgem sujas, desgrenhadas, sem acessórios. São imagens da não-identidade, embora quase todas tenham nome.
Não se sabe por que foram fotografadas estas mulheres e não outras. Percebe-se que o enfoque de muitas delas era a bizarria da sua aparência, a deformidade de partes dos seus corpos, o excesso de pêlos dos seus rostos, de algumas são retratados apenas pedaços dessa estranheza: a mulher 6 tem uma mancha negra que lhe ocupa boa parte do crânio rapado; a 8 tem barba; a 70 é uma idosa com manchas de vitiligo e dois grandes laçarotes feitos de farrapos; a 79 é negra e foi fotografada nua.
São imagens que reflectem um tempo em que a fotografia médica “se fez de algum modo herdeira do voyeurismo dos antigos cabinets de curiosités e dos espectáculos de feira onde se exibiam ‘monstros’ (‘freaks’)”, escreve o investigador António Fernando Cascais no artigo A cultura visual da Medicina e os prodígios da fotografia.
A fotografia psiquiátrica, “imbuída de pretensões científicas”, pretendia tornar a loucura “visível”, continua o mesmo autor. Os esgares, os gestos, as deformações corporais pretendiam funcionar como apensos clínicos que corroborariam diagnósticos.

Crucifixo em alfinete-de-ama
Do espólio do antigo Manicómio Bombarda, agora à guarda do Hospital Júlio de Matos (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa), também restaram fotografias colectivas. Estas devolvem-nos o espaço onde se desenrolava a vida de Leopoldina. Uma imagem mostra doentes descalças alojadas num corredor, o chão de cimento manchado. Contrasta com outra imagem: de uma enfermaria feminina de chão limpo e camas feitas de branco.
São fotografias sem data. O que sabemos é que as imagens da sujidade e sobrelotação devem ser anteriores a 1948, as que exibem ordem e asseio seriam posteriores a 1948, ano em que se comemorou, com uma exposição e um catálogo, os 100 anos da instituição. As imagens do “antes” e do “depois” pretendiam mostrar a forma como se tinha operado uma grande transformação nas condições do hospital e na vida dos seus habitantes. À data, Leopoldina já estava no manicómio há seis anos.
De loucos “ociosos” anuncia-se também que, após 1948, passaram a ter o seu quotidiano, terapeuticamente, ocupado pelo trabalho. A história clínica de Leopoldina é magra, quase só formulários, mas durante quatro anos tem “Registos de ocupação” que mostram como a punham a costurar todos os dias, menos domingos e feriados, entre quatro e seis horas. Sabemos que a 7 e 8 de Junho de 1948 foi especialmente produtiva, e que terá cosido mais de 6 horas por dia.
Procuro Leopoldina nas fotografias colectivas de mulheres a coser. Como esta, com cinco mulheres de negro a costurar supervisionadas por uma enfermeira de branco que parece ocupar o papel central de anjo. Não a encontro. Nem é Leopoldina na fotografia que mostra uma mulher com as mãos juntas em gesto de reza. Mas a pose devota transporta-me para outro dos seus objectos: o crucifixo pendurado num alfinete-de-ama ferrugento que Leopoldina usaria ao peito, e que o peso da cruz entortou. A face de Jesus, ao contrário do corpo, está lisa. Terá Cristo perdido as feições de tanto ter sido afagado em prece?

“Quando casarei?”
Na secção de Astrologia do Modas & Bordados de Setembro de 1931, as respostas às leitoras são o espelho do maior desejo feminino ao tempo, parece que o único. Sob pseudónimo, “Apaixonada”, “Glicínia Branca” e “Alentejana muito preocupada” perguntam: Quando casarei? “Até aos seus 24 anos encontrará aquele que o céu lhe destina”; “Tem casamento indicado para os seus 29 anos, com noivo mais velho que a sua idade, possuidor de alguns bens de fortunas e de seu casamento conceberá cinco filhos que todos criará com felicidade”; “Achamos no seu horóscopo a indicação que virá a casar tardiamente: pelos seus 32 anos.”
Leopoldina tinha já cumprido o popular desejo feminino. O seu bilhete de identidade informa-nos, contudo, que aos 42 anos já tinha perdido o marido.
Além do bilhete de identidade, carimbo, óculos e Jesus Cristo dependurado em alfinete-de-ama, a lista dos objectos da “enferma”, depósito n.º 139, inventaria também, de forma indistinta, “vários papéis”. Como se fossem apenas isso, papéis, e neles não estivesse desenhado um roteiro da sua vida.
Nos papéis de Leopoldina o meu olhar é atraído pelos azuis. São folhas seladas de 25 linhas onde dantes se pediam e atestavam solenemente informações tidas como importantes. Nesta folha azul Leopoldina é bebé, tem cinco meses, é 12 de Maio de 1889, um domingo — está a ser baptizada no Monte de Caparica. A igreja permanece integrada no casario antigo, que há-de ser o mesmo da altura, assim como a pia baptismal, que agora está tapada com uma cobertura de madeira, o que faz com que o conjunto pareça um tacho.
A menina era a filha “legítima” de uma doméstica e de um carpinteiro, “exposto da Roda de Lisboa”, nome que se dava aos bebés abandonados num mecanismo giratório que existia à porta de instituições de caridade. Os padrinhos, ele trabalhador, ela doméstica, não assinaram, “por não saberem escrever”. Ao tempo, cerca de 70% da população portuguesa era analfabeta. Leopoldina escrevia.
O bebé tinha nascido no “lugar do Arieiro” pelas 6h do dia 9 de Janeiro de 1889. Ainda existe o sítio, fica no Monte de Caparica (concelho de Almada), mas agora escreve-se Areeiro, é um aglomerado de vivendas com ar clandestino. Um barulho, que inicialmente parece a buzina de um carro, revela, afinal, um rebanho de ovelhas que atravessa terrenos cheios de ervas e material de estaleiro. Perto dali há uma metade de moinho de vento em ruínas com escadas de pedra que já não vão dar a lado nenhum. Ninguém a quem pergunto tem qualquer memória de uma família como a de Leopoldina.
Ao tempo, o Monte de Caparica era aldeia e a Costa de Caparica, ali perto, estava longe de ser praia. Em 1923, por exemplo, o escritor Raul Brandão descreve-a como “uma grande extensão de areal, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. Areia e céu, mar e céu.” Quando, em 1945, a Caparica é içada à condição de “estância de turismo”, já Leopoldina estava fora do mundo.
O seguinte papel azul de Leopoldina está muito danificado. E aqui encontramo-la, a 26 de Maio de 1937, a sonhar. Em mudar de vida. A querer evadir-se, a querer fugir de Portugal, aos 48 anos. Pede o seu registo criminal para “efeitos de tirar um passaporte”. Para onde quereria viajar?
Além de assinar, “a requerente” timbra duas vezes, como tinha feito no bilhete de identidade, o seu carimbo de modista, mesmo em cima da assinatura. Talvez quisesse provar a sua capacidade de se prover em terras estrangeiras. Quereria viajar para ser modista, para continuar a sê-lo? Ou talvez não conseguisse sê-lo, por alguma razão, em Portugal.
Viro as costas do pedido oficial e constato como Leopoldina transformou o verso em bloco de notas. São letras sumidas a lápis de carvão, escritas quatro anos depois do documento: uma viagem ao seu futuro. Pelas poucas frases que consigo decifrar, percebo que, se pedir um passaporte significava sonhar, nas costas estão linhas de desesperança. No documento informa que “já assinou Leopoldina de Almeida Soares”.
Há mais folhas azuis na sua colecção de papéis. Esta é, das três, a mais bem conservada. Nela, certifica-se que “aos vinte e um dias do mês de Setembro do ano de mil novecentos e sete, nesta igreja paroquial de Nossa Senhora da Pena, compareceram os nubentes, ele, Manuel Soares, de vinte e seis anos, polícia civil de Lisboa; ela, Leopoldina de Almeida, de dezoito anos.”
Neste meu final de tarde, a igreja da baixa de Lisboa onde Leopoldina se casou está escura e há apenas duas mulheres sentadas, uma parece ler, presumo que a Bíblia, a outra, mais velha, anda muito activa debaixo do púlpito lateral, chocalhando um molho de chaves como uma roca de criança. Deve viver por perto e uma daquelas chaves é a da porta de casa onde imagino que viva sozinha.
Sento-me, tentando sintonizar-me em Leopoldina e Manuel. Terá usado vestido de noiva? Terá sido Leopoldina a fazê-lo? Mas tudo me prende ao presente. Os meus pensamentos são interrompidos por um “estou?” vindo da sacristia, é a senhora das chaves a atender o telemóvel.
Concentro-me no chão, concentro-me no passado. O soalho gasto de madeira há-de ser o mesmo do dia de casamento. Terá ocorrido a Leopoldina, quando estava no altar de mármore rosado, que na pia baptismal que lhe ficava à direita talvez viesse a baptizar um filho seu?
A mulher que lê mexe-se, às vezes suspira, fazendo ranger o banco comprido de madeira. Seriam os mesmos bancos onde se sentaram os convidados de Leopoldina? Quem seriam? Os pais dos noivos? As duas irmãs de Leopoldina?
Volto a olhar para a sua certidão de casamento e reparo como é tão mais recente do que o seu casamento. Entre o dia em que se casou e aquele em que foi emitida (13 de Janeiro de 1939) passaram-se 30 anos. Numa altura em que já passava dificuldades, Leopoldina gastou 13,24 escudos para ter consigo uma folha que comprova, oficialmente, que um dia casou, cópia do que ficou escrito nos livros da 8.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa. É também nestes livros, que abrangiam a antiga freguesia lisboeta da Pena, que ficará escrito o seu fim.

Morada breve
A caminho da casa onde morou com o marido, à beira-rio, passo pela Estação Fluvial de Belém e ocorre-me que, ao tempo, quando ainda faltavam 58 anos para haver ponte sobre o Tejo, era como se Leopoldina e Manuel fossem vizinhos, um em cada margem do rio, ela na Caparica, ele em Lisboa, para onde vieram viver os dois.
O casal morou no 1.º andar deste pequeno prédio de um azul tão desmaiado que quase parece cinzento. As duas janelas que lhes emolduravam a visão da rua têm caixilhos de madeira com massa branca de vidreiro a esfarelar-se. Não têm cortinados, as portadas de madeira brancas estão abertas de uma forma que se percebe que é de abandono, que ninguém as deixou assim para ir trabalhar hoje de manhã. O número 139 da Rua do Embaixador não tem campainha e ninguém responde ao bater da porta do rés-do-chão.
Na rua circulam sobretudo jovens estrangeiros, há duas trotinetas eléctricas no passeio, uma empregada que faz a limpeza a vários dos alojamentos locais na rua não conhece ali ninguém. Virgílio Braz usa bengala. Lembra-se da rua há 60 anos, com dois carros a circular, fogueiras na rua, uma rua familiar de pessoas modestas, casas arrendadas, em que as pessoas se sentavam às portas. “Acabou tudo. Estou farto desta rua. Está tudo morto”. Não sabe quem vivia na tal casa.
Remetem-me para a veterana da rua. Toco ao seu andar e uma idosa de camisa interior acede a vir à porta, mas percebo, pela recepção, que disponho de muito pouco tempo para dizer ao que venho. Procuro saber se se lembra de um casal que ali morou no início do século passado. O que me consegue dizer é que, durante o seu tempo de vida, viveram no 1.º andar de Leopoldina e Manuel, não necessariamente por esta ordem: “Um moço da aviação; um engenheiro; um PIDE; e um casal que saiu há poucos meses porque houve um desentendimento em relação à renda — foram morar para o Cacém [subúrbios de Lisboa]”.
A Rua do Embaixador foi morada breve. Há outro papel que, não sendo azul, tem mais importância do que os outros. Neste está registado, em tom burocrático, que o marido de Leopoldina lhe morreu dentro da casa de azul-desmaiado, eram duas da tarde de 9 de Outubro de 1908. Estavam casados há um ano e um mês. Leopoldina é viúva aos 19 anos.
Viro este papel oficial para ver se Leopoldina também fez dele bloco de notas. E, em poucas linhas, tenho, a lápis de carvão, de novo, o seu futuro. Como uma folha de papel contém, em frente e verso, duas dimensões do tempo de uma vida, 33 anos de permeio.
O assento de óbito diz-nos ainda que o seu marido “não fez testamento, nem deixou filhos”. E que foi enterrado no cemitério que ficava mais perto da casa onde moravam.

Mortos não reclamados
O cemitério da Ajuda tem aspecto imponente, real. Inicialmente, a rainha Dona Maria II mandou construí-lo para ali serem sepultados os criados da Casa Real, mas depois tornou-se público. O site da Câmara de Lisboa escolhe destacar vários jazigos “de importância histórica ou arquitectónica”, como o do almirante Gago Coutinho, que realizou a primeira travessia aérea Lisboa-Rio de Janeiro, e o dos jogadores do Clube de Futebol Os Belenenses Matateu e Pepe.
A secretaria do cemitério parece uma repartição pública como outra qualquer, mas o sininho preso à porta, que toca a cada entrada, dá-lhe o som de loja comercial. Eu, “tlim-tlim-tlim-tlim”, procuro saber que fim teve o jovem marido de Leopoldina de Almeida Soares.
O marido morreu-lhe “pelas duas da tarde”. Foi tudo rápido. Na tarde do dia seguinte já aqui estava, e logo foi sepultado. No Registo de Enterramentos-Livro 13, à volta da morte de Manuel Soares, há muitos a morrerem de pneumonia e enterite, ele morreu de “caquexia desintérica”. As doenças infecto-contagiosas eram a principal causa de morte. No primeiro ano em que há dados (1920) um português podia esperar viver até aos 35 anos. Manuel Soares não passou dos 26.
Imagino Leopoldina a assistir, na casa de portas escancaradas, impotente, à doença de Manuel, a não saber o que fazer para o ajudar, a ver passar os dias. É improvável que tivesse dinheiro para ir a um médico.
Encontro o tipo de morte do jovem marido de Leopoldina a ser descrita numa tese de doutoramento de 1920. Escreve o seu autor, o médico Manuel Pereira da Silva: “Com a marcha da doença observa-se profundamente a emaciação, a grande debilidade neuro-muscular. A língua torna-se pastosa e seca pela deficiência da secreção salivar. A sede é viva e a anorexia é completa; a palpação é dolorosa na região do cólon.
A febre, no início, é pouco elevada, subindo até 37° e 38,5°, e mesmo 39°; não tarda a cair para oscilar entre 37° e 38°. Se a temperatura permanecer estável acima de 38,5°, deve prever-se graves complicações.
O pulso é pequeno, às vezes irregular. Ao fim de 10 a 15 dias, se a doença tende para a cura, os fenómenos dolorosos desaparecem, as dejecções diminuem retomando o doente o seu aspecto normal, sobrevindo-lhe, pouco a pouco, o apetite. Pode, porém, tender para a cronicidade, levando o doente à caquexia disentérica e à morte.”
Manuel foi enterrado na “Secção 3 P”, P de sepulturas “Perpétuas”. Na altura, chegou a ter “um arranjo”, esclarece-me a funcionária, mas é impossível saber de que tipo, não ficou escrito. Não se sabe se Leopoldina ou os pais de Manuel lá chegaram a gravar algo como o que agora encontro escrito na mesma zona: “Filho que foi modelo de todas as virtudes”, “Eterna saudade”, “deixaste em cada um de nós a lembrança viva e uma saudade que jamais se extinguirá”. O que se sabe é que, por falta de pagamento, a sepultura perpétua de Manuel Soares foi levantada e, nesse tempo, todos “os mortos não reclamados” iam para a “vala comum”, que hoje fica “em local não identificado”.

O ouro de Leopoldina
Neste outro papel está a três dias de fazer 50 anos. Mostra Leopoldina a tentar manter-se à tona. A palavra “Ouro” destaca-se. Não sabemos que valor tinham para si o “cordão partido e a argola” que teve de penhorar a 6 de Janeiro de 1939. Pelos 38,5 gramas recebeu 616 escudos. Não os conseguirá reaver.
O papel do penhor tem à direita uma coluna de números que se lê em sentido decrescente. Passaram cerca de três meses e Leopoldina já pouco tem a receber: dos 616 só lhe restam 66 escudos. No manicómio entrará com menos de metade desse valor (30,50 escudos).
Passa-se um ano sobre a entrega do ouro. A 27 de Fevereiro de 1940, era uma terça-feira, e sabemos — com uma precisão que só é possível na hora do seu nascimento, do seu baptismo, da morte do marido, e da sua própria morte — exactamente o que fazia: passavam 15 minutos da meia-noite e Leopoldina dormia.
O prédio onde descansava tem um portão duplo verde com uma rede de ferro, por onde espreito. Quatro holofotes metálicos suspensos do tecto falso iluminam, de repente, apenas porque nesse momento vai um homem a sair, um hall amplo, chão de pedra calcária branca. O estrangeiro fecha rapidamente o portão, quando me vê a olhar para o interior, temendo que eu entre.
O n.º 36 da Rua Marechal Saldanha fica no centro de Lisboa, na rua que conduz à estátua do Adamastor. O local onde dormia Leopoldina é hoje o Palácio Camões Serviced Apartments. Não há quem a possa ter conhecido e ninguém lá vive. Para entrar é preciso código: “Utilize o teclado com o código de acesso enviado para o email fornecido na reserva (voucher). Caso não possua os dados, consulte o email ou, em alternativa, ligue.” Percebe-se que é a última coisa que querem que façamos. É simpático quem me atende, mas diz: “Não sei quem gere o alojamento. Eu dou apoio a hóspedes”.
Leopoldina dormia nas escadas largas de pedra fria deste prédio. É o guarda n.º 3094, José Guerreiro, quem a leva presa “para averiguações”, “em virtude de ali se encontrar abandonada a dormir” e de “não lhe ser conhecido qualquer meio de vida por onde possa angariar meios de subsistência para se manter”, lê-se no ofício. À época, a polícia tinha poderes para deter quem era encontrado na rua sem casa nem meios de ganhar a vida. A hora em que foi acordada do seu sono ficou como a hora da ocorrência: 0h15.
Na capa do processo amarelecido, que consulto na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, destaca-se uma palavra vermelha a maiúsculas garrafais: “MENDIGA”. Foto
Em 1940, no ano em que Leopoldina de Almeida é apanhada, Salazar tinha aprovado legislação (o Decreto-Lei n.º 30.389) específica para lidar com o problema dos “mendigos e vagabundos”, definidos como “grupo ambulatório de inadaptados à vida da sociedade, dela segregados pela falta de trabalho, pela imprevidência ou falta de assistência da família”.
Das escadas “onde vinha pernoitando desde há muito tempo”, levam-na nessa noite para a 3.ª Esquadra da Travessa das Mercês, sob a alçada da Secção de Costumes e Sanidade da Polícia de Segurança Pública de Lisboa. No “calabouço 1” a “mendiga” Leopoldina aguarda o seu destino.
É interrogada. Conta que tem uma irmã a viver em Lisboa. A polícia descobrirá uma outra, a viver no Monte de Caparica.
Na morada onde vivia a irmã do Monte de Caparica funciona hoje uma loja chinesa, que antes tinha sido um armazém de vinhos. Não encontro quem tenha memórias de usos anteriores.
O prédio da irmã de Lisboa, o n.º 46 da Rua da Condessa, ainda é de habitação. O seu 1.º esquerdo está iluminado, as janelas bem cuidadas, de alumínio branco que imita madeira e vidro duplo. Atendem-me e ainda tenho tempo de dizer pelo intercomunicador, “Boa noite, ando à procura de uma senhora chamada…”, mas não chego a acabar, “can you speak english?”.
O percurso entre as escadas onde Leopoldina dormia e o n.º 46 da irmã faz-se em dez minutos e pergunto-me se a proximidade seria apenas coincidência. Lembrava-me de ter lido no livro Sem-Amor Sem-Abrigo que os sítios onde as pessoas que vivem na rua escolhem dormir são, não raras vezes, significativos e não meros acasos geográficos. Um dos seus autores, o psiquiatra António Bento (o outro é Elias Barreto), explica-me que, por exemplo, à volta da Estação de Santa Apolónia, em Lisboa, é usual encontrar a dormir muitas pessoas vindas do Centro e do Norte do país. Como se os carris de ferro e os comboios que neles circulam para cima e para baixo funcionassem como um cordão umbilical que as mantém ligadas à origem. “No Terreiro do Paço dorme muita gente chegada do Sul do país”. E lembra um homem que conheceu e que decidiu dormir todas as noites no passeio junto à casa da sua família, que o deixou para trás sem nunca lhe querer dizer para onde ia.

“O meu desterro”
A irmã que lhe ficava mais próxima depõe na esquadra: está “de relações cortadas” com Leopoldina há 22 anos, “no entanto, há dias bateu-lhe à porta e mandou-a entrar”. “Mas como principiasse logo a fazer disparates, o seu marido recomendou-lhe para não a consentir mais em casa, pois caso contrário deixaria de viver com ela”. A única coisa boa que tem a dizer da irmã é que “foi uma boa modista”, mas que agora “ninguém lhe dá trabalho, devido ao seu estado anormal”.
“Os indigentes desamparados e inválidos serão entregues, sempre que possível, às suas próprias famílias”, dita também o Decreto-Lei n.º 30.389. Não foi possível.
Cerca de 20 dias depois de ter sido “apanhada” na rua, as duas irmãs concordam em começar a pagar uma quantia para mandar Leopoldina para o Asilo de Mendicidade da Mitra e mantê-la lá. Tem 51 anos quando se torna a “Albergada 5755”.
No tempo de Leopoldina, “mitra” ainda não era adjectivo, ainda não queria dizer também, como agora, algo como pessoa reles com mau aspecto, de comportamento violento ou ameaçador. Quando Leopoldina lá foi colocada, Mitra era apenas o nome de um albergue aberto oito anos antes. À época, “era o caixote de lixo social: prostitutas, ladrões, bêbados, doentes mentais”, resume o psiquiatra António Bento. O objectivo dos albergues, equiparados a prisões, era “eliminar das ruas e dos lugares públicos a aparência da miséria”, diz o decreto-lei de 1940.
As costas do pedido de registo criminal com vista a emissão de passaporte e do assento de óbito do marido preencheu-as Leopoldina na Mitra, palavra que nunca chega a usar, como se não estivesse de facto a viver lá. Escreve apenas “Poço do Bispo. Lisboa” (local onde ficava este asilo).
As suas notas são um garatujar sumido e desordenado onde procuro, para tentar entrar, pelo menos de uma maiúscula que me conduza a um início. Percebo, no meio de muitas linhas que não consigo ler e de outras onde não encontro qualquer lógica, que Leopoldina escreve numa “camarata” e se sente amedrontada, no meio de “cadastrados e cadastrados”, de “canalhas e putas”. E que se vê como diferente dos que a rodeiam: “Eu sempre trabalhei.”
Que sente que a afastaram do que tem de seu: “… vestidos e sapatos nada me entregaram… não coisa nenhuma... a mim nada me deram, o que me deixa sem trabalhar…”.
As palavras que entendo parecem traduzir desamparo “… sou a mesma…”, “… eu que cá estou senhor…”, sensação de descontrolo “sou uma boneca… nas mãos…”; a sensação de viver num mundo fora do mundo “… a justiça não me governa não estão aqui as suas leis a trabalhar”. “… O meu desterro…”. E o abandono: “Mas a minha irmã nem hoje se lembrou de mim”.
“Faz seis meses que estou aqui infelizmente…”. Ficará cerca de dois anos. A perda do marido e da sua protecção económica, mais ainda quando não há filhos, era, à época, um dos factores que mais conduziam à mendicidade e, por consequência, ao internamento de mulheres no albergue de mendicidade da Mitra na época em que Leopoldina lá esteve, escreve Susana Pereira Bastos no seu livro O Estado Novo e Os Seus Vadios - Contribuição para o estudo das identidades marginais e da sua repressão. Quase 60% das mulheres com mais de 52 anos internadas na Mitra no tempo de Leopoldina são viúvas.
A Mitra estava transformada “em instituição pré-psiquiátrica”, estimou-se que 70% dos seus habitantes chegaram a ser doentes mentais, continua a autora. A polícia que a prendeu reconhece na mendiga “indícios de alienação mental”, sem explicar quais são. Leopoldina ficou pobre e estaria doente.
Hoje sabe-se, e não se sabia no tempo de Leopoldina, que existem as chamadas “determinantes da saúde mental”: está estudado como, por exemplo, a pobreza, o baixo estatuto social e económico e as preocupações económicas podem ser “factores predisponentes” da perturbação mental, refere o livro A Saúde Mental dos Portugueses, de José Miguel Caldas de Almeida. A falta de dinheiro, de amor ou a solidão não bastam para enlouquecer, mas podem ajudar. Carlos Braz Silva, em Psiquiatria Fundamental, chama-lhe “terreno de fragilidades”.
Sabe-se que “em 60% dos casos as perturbações mentais são anteriores à vida de rua”, mas que a rua muitas vezes as agrava. “Se tem febre de 40 graus e anda na rua sem se tratar, em princípio a sua doença piora”, diz António Bento, psiquiatra do Hospital Júlio de Matos que trabalha há 30 anos com esta população.
Há pessoas — doentes mentais como são a maioria dos que andam na rua - que já não sabem quem são. O psiquiatra lembra a história passada consigo de um homem que já não se lembrava quem era. Acabaram por lhe descobrir o nome e perguntaram-lhe um dia, na rua: “Olha lá, tu não és o Tiago? O olhar dele, ficou muito espantado. Foi muito impressionante, nunca mais me esqueci: ‘Ah, eu era o Tiago’. A dimensão desta frase. Irrepetível. O grau de gravidade da doença era tal que deixou de saber quem era. Nunca foi tratado, é já o estilhaçar do eu.”
Mas, ressalva, ser “uma pessoa em situação de sem-abrigo” hoje é melhor do que ser “mendigo” no tempo de Leopoldina. Não é só o nome que muda. “A Leopoldina hoje teria muito mais chances. Seria mais bem tratada, mais bem aceite pela sociedade. Comeria comida de uma carrinha, tomaria banho. Podiam dar-lhe um quarto.” Mas “o Presidente Marcelo não falaria dela”, ironiza, porque associar o problema dos sem-abrigo apenas à pobreza, ao desemprego, à habitação, “é atirar ao lado”. “Noventa por cento dos sem-abrigo são doentes psiquiátricos. Precisamos é de psiquiatras na rua.” Depois, continua, se Leopoldina tivesse sorte, podia ser medicada. E talvez aparecesse às reuniões de quinta-feira.
Todas as semanas, no Hospital Júlio de Matos, é organizado um círculo de cadeiras de plástico de esplanada dentro de um antigo ginásio. São as reuniões do Grupo Psicoterapêutico Aberto, pensado também para pessoas sem abrigo com problemas de saúde mental.
Ana Cristina da Silva, de 58 anos, às vezes, aparece. Carrega, como Leopoldina, objectos. “Tenho a minha carteira com os documentos, cartão de cidadão, os meus óculos que dão para ver ao perto e ao longe, o meu espelho, o meu rímel, o meu lápis, o meu bloco de notas, um livro. E os meus medicamentos”. Mostra-mos: “Este é um antidepressivo, este é um estabilizador de humor, este é para não ser agressiva, senão passo-me, este é para a ansiedade, este para dormir”. Há 19 anos que foi diagnosticada como doente bipolar. “Não falho. É o que me faz levantar da cama”, mesmo quando não dorme numa, “é o que me faz sair do escuro”. “Não posso falhar. Os ‘químicos’ e o meu comprimido”. Estranho a distinção e Ana Cristina sorri e explica-me que “o comprimido” é o filho, que tem 22 anos e vive com o pai. “Às vezes ele é uma lamela de comprimidos.” Uma das razões por que foi parar à rua foi porque “levava porrada” do marido. Ana liga ao filho do telemóvel, às vezes só para lhe ouvir o silêncio. “Aquele menino é meu.”
No saco de pano tem também uma chave, de um roupeiro que não fecha e que fica num quarto que não é seu e onde não sabe durante quanto tempo vai conseguir dormir.
Podem usar as definições que quiserem para sem-abrigo, diz o psiquiatra António Bento, mas para si basta-lhe uma e retira do bolso um objecto: “Sem-abrigo é aquele que não tem isto, é aquele que não tem uma chave de casa”. Foto
Ao ouvir a definição, lembro como Leopoldina entrou no manicómio com um molho de chaves. São quatro, duas são duplicados. Todas demasiado pequenas para um dia terem aberto uma porta de casa. Talvez um armário.
De cada vez que volto à caixa com objectos de doentes encontro novidades, pormenores que me escaparam. Agora, guardados na última página do bilhete de identidade de Leopoldina caem-me quatro papelinhos quase translúcidos. Antes de os tentar ler vejo que estão preenchidos até às margens, que quando as palavras terminam antes da linha, Leopoldina prolonga-lhes artificialmente as letras finais, a perna do “l” de Portugal, a perna do “a” de Espanha e de Leopoldina. É como se quisesse trancar as linhas para que ninguém as acrescente, como que dizendo que aquelas linhas, e o que lá decide escrever, lhe pertencem.
Nos papelinhos finos constato que, quando os escreveu, um ano antes de ser internada, em Agosto de 1941, Leopoldina estava fora de si. Que de repente surge, perfeitamente legível e de forma repetitiva, um apelido novo que juntou àquele com que nasceu e que também já não é o Soares do marido: agora assina Leopoldina d’Almeida Franco.
“Franco” do “generalíssimo”, que tinha subido ao poder em Espanha dois anos antes, com quem se julgará casada, e de quem fala muito, como “um oficial estrangeiro” a quem se deve “respeito”. Espanha surge, nesta narrativa em pedaços, como uma maravilha, “a Espanha é linda”. Espanha é um não-Portugal, o apelido que junta ao seu um escudo protector.
Leio no livro de António Bento (e Elias Barreto), Sem-Amor Sem-Abrigo, que, para quem vive na rua, onde tudo é hostil, o delírio fornece a alguém com doença mental “um mundo objectal alternativo que providencia sentimentos de omnipotência que contrastam com o seu estado actual”. “Não sabem que eu sou Leopoldina d’Almeida Franco.”

Ao lado
Sete meses depois das notas escritas na Mitra, “Leopoldina d’Almeida Franco” é transferida para o “Manicómio Bombarda” (como o apelidavam à época), onde a sua “alienação mental” ganha nome.
A doença que lhe atribuíram em Abril de 1942 desapareceu das classificações de doença mental actuais. Leopoldina sofria então de parafrenia. “Para”, palavra de origem grega que significa ao lado, e “frenia” pensamento. Pensamento ao lado. Hoje Leopoldina talvez fosse considerada esquizofrénica, já que aquela doença é por vezes englobada na esquizofrenia, explica o livro de Nuno Borja Santos Parafrenias. Foto
Na folha de rosto da sua história clínica, o seu diagnóstico é “Parafrenia Sistemática”. Neste subtipo da doença (há quatro), o psiquiatra alemão que primeiro a descreveu, Emil Kraepelin, descortinava várias fases, pelas quais Leopoldina pode ter passado.
Kraepelin nota que é uma doença que começa tardiamente. No caso de Leopoldina permitiu ainda que se casasse, que exercesse uma profissão. De início, “o doente torna-se, paulatinamente, silencioso (…) sonhador (…) desconfiado (…), virado sobre si mesmo, com ocasionais conversas bizarras e incompreensivas”, lê-se na obra de Nuno Borja Santos.
Numa segunda fase, surgiria “um delírio de perseguição, ainda não organizado. O doente sente-se vigiado, ameaçado e inseguro e pode sentir as suas acções comentadas”. Passados vários anos surgem então, “subitamente, ideias de grandeza”. A mais frequente: “Exaltação do estatuto social”. “Leopoldina d’Almeida Franco”.
Morre em 1961, aos 72 anos, de trombose cerebral, na freguesia onde tinha casado, apenas porque é a mesma onde ficava o Bombarda, que figura como a sua “morada”. No boletim hospitalar que dá conta da sua morte — estava internada há 19 anos — a sua parafrenia foi reclassificada, passa de “sistemática” a “expansiva”. Erro de preenchimento do formulário no fim de vida ou afinação de diagnóstico? Foto
Citado no livro Parafrenias, Kraepelin explica que neste outro tipo de parafrenia, a expansiva, as ideias de perseguição perdem fulgor para se expandirem “ideias delirantes de grandiosidade”. Os doentes põem mentalmente de pé um “edifício de glória”.
A sua história clínica nada diz sobre a forma como foi tratada (os primeiros psicofármacos eficazes surgiriam só em 1954). Contém apenas duas folhas dactilografadas que registam as suas palavras, só no ano em que é admitida, em 1942. Em Abril, mês em que entra, é chamada ao gabinete médico duas vezes. Nas suas respostas surge delineada uma espécie de “vida B”, vida paralela àquela que de facto teve.
A Leopoldina que ali se apresenta não foi mendiga, não veio da rua, nem viveu num albergue de mendicidade: chega directamente “de viagem das Sírias e maravilhas”.
Leopoldina não tem duas irmãs com quem está de relações cortadas e que pagaram para a colocar num albergue de mendicidade, tem, sim, cinco irmãos, “quatro infantes” cabendo-lhe, na prole, o papel privilegiado de “a herdeira”. No diálogo com o médico revela esta sua nova genealogia e surge o nome verdadeiro do seu pai, só que agora não é nem carpinteiro nem exposto da Roda, é antes “D. Lucas, o verdadeiro rei”, ao invés de D. Carlos, que apenas “dizia que era o rei”.
Leopoldina nega encontrar-se num manicómio, embora se dirija ao seu interlocutor como “senhor doutor”. Está alojada, consoante as respostas, ora num “palácio”, ora num “parlamento”, ora num “palácio-parlamento”.
A mente doente de Leopoldina ainda produz, na última vez que as suas palavras são registadas, um acrescento final à sua vida “ao lado”. O médico regista que “à sua chamada ao gabinete apresenta-se ofegante, risonha, olhar brilhante”: “Disseram-me que era o meu filho que me tinha mandado chamar”. Mas logo se corrige, “ora isso não pode ser” porque ele “está em casa de um irmão meu na Caparica”.
Leopoldina nunca teve filhos, mas a Caparica onde nasceu mantém-se na sua geografia. Os autores do livro Parafrenias lamentam o desaparecimento da parafrenia como doença mental, reclamando a sua especificidade porque, ao contrário da esquizofrenia, apesar dos delírios, a personalidade e os afectos se conservam.
Passo em revista os objectos que restaram de Leopoldina dentro da caixa. E ocorre-me que, ao transportar o que transportava, ainda saberia quem era. Que pode não ter sido por acaso que, até entrar no manicómio, manteve consigo o seu assento de baptismo, prova de que um dia nasceu, foi bebé e teve pais; o seu carimbo de modista, prova de que um dia teve uma profissão; a certidão de casamento e assento de óbito de Manuel, que certificam que um dia teve um marido e o perdeu; e o seu bilhete de identidade cosido à mão.
O psiquiatra António Bento lembra-se de ter conhecido na rua um homem já muito perturbado mentalmente, que fazia questão de mostrar algo do qual não se separava: era uma sandes de codorniz, putrefacta. A sua mulher, “viviam na rua em casal, algo muito raro”, morreu quando estava a comer a sandes que o senhor tinha colocado dentro de um saco de plástico que abria e mostrava, como um relicário, e de onde emanava um cheiro que só não era insuportável para si.