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True Story Award 2021

O sagrado proibido

Ao longo de quase 400 anos, professar uma fé que não fosse a católica foi considerado crime no Brasil. O direito à liberdade religiosa, garantido no texto constitucional de 1891, três anos após a abolição da escravidão, tirou da ilegalidade a fé de judeus, muçulmanos, espíritas kardecistas e, especialmente, indígenas e ex-escravos africanos, que até então cultuavam clandestinamente religiões proibidas. Porém, o Código Penal, elaborado em 1890, permitiu que grande parte da população negra seguisse na mira da polícia por outros 50 anos por conta de dois artigos penais, de número 157 e 158, que puniam, respectivamente, “a prática do espiritismo, da magia e dos sortilégios” e o dito “curandeirismo”. Integrantes da umbanda e do candomblé passaram a ser identificados como praticantes de um suposto “baixo espiritismo”, em oposição aos espíritas kardecistas, tidos como “alto espiritismo”. Assim, de 1890 a 1941, mães e pais de santos em todo o país foram presos, acusados de ser “feiticeiros”, “bruxos” e praticantes de “magia negra”. A repressão estatal às religiões de matriz africana abarrotou as delegacias com objetos sagrados, retidos como "evidência de crime". Até hoje, quase 130 anos depois do início das apreensões, 524 objetos permanecem sob custódia na reserva técnica do Museu da Polícia Civil. O prédio do museu é o mesmo que sediou o Departamento de Ordem Política e Social, local onde milhares de pessoas foram presas e torturadas durante a ditadura militar. Nesta reportagem especial, a revista Época mapeou os locais nos quais ocorreram as batidas durante o período de repressão, identificou vítimas e suas respectivas acusações, bem como seus descendentes vivos, pressionou as autoridades pela liberação dos objetos e traçou um panorama da situação atual das religiões de matriz africana no Brasil. Em 2019, a polícia concordou em liberar as peças para o Museu da República. O país, enfim, poderá estudar e conhecer as vítimas dessa perseguição.

Luzia Cardozo rezava em frente a um oratório para tratar de duas crianças quando policiais chegaram. Preso em seu terreiro, Sizenando José da Silva foi levado por agentes e obrigado a encenar na delegacia o momento em que um espírito “baixa” à terra. Tito Augusto Dinis dos Santos viu seu terreiro ser arrombado ao menos três vezes por policiais que o acusavam de “feitiçaria”. Esses episódios têm algo em comum, ocorreram há um século, mas só terão um desfecho nos próximos dias, quando seus objetos saqueados sairão de uma delegacia de polícia para se tornar peças de um museu.

Ao longo de quase 400 anos, professar uma fé que não fosse a católica foi considerado crime no Brasil. A abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte, prometiam inaugurar um tempo de novas liberdades, separando de vez a Igreja do Estado. O direito à liberdade religiosa, garantido no texto constitucional de 1891, tirou da ilegalidade a fé de judeus, muçulmanos, espíritas kardecistas e, especialmente, indígenas e ex-escravos africanos, que até então cultuavam clandestinamente religiões proibidas.

Mas não foi o que aconteceu. O Código Penal, de 1890, permitiu que grande parte da população negra seguisse na mira da polícia por outros 50 anos. Se no tempo da escravatura a discriminação tinha como foco a cor da pele, com a nova norma criaram-se subterfúgios para perseguir a fé que veio da África nos navios negreiros. Os artigos penais de número 157 e 158 puniam, respectivamente, “a prática do espiritismo, da magia e dos sortilégios” e o dito “curandeirismo”. Integrantes da umbanda e do candomblé passaram a ser identificados como praticantes de um suposto “baixo espiritismo”, em oposição aos espíritas kardecistas, tidos como “alto espiritismo”. Assim, de 1890 a 1941, mães e pais de santos em todo o país foram parar em delegacias acusados de ser “feiticeiros”, “bruxos” e praticantes de “magia negra”.

Nos últimos seis meses, ÉPOCA cruzou o resultado de duas pesquisas inéditas feitas pelos historiadores Valquíria Velasco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Arthur Valle, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com o intuito de mapear os locais onde ocorreram as batidas policiais na então capital federal do Brasil. Ambos os estudos foram construídos a partir de notícias de jornais da época e processos criminais guardados no Arquivo Nacional.

Apesar de expressivos, os números são apenas uma estimativa da violência praticada pela polícia na época. “O que conseguimos resgatar nos arquivos e nos jornais é uma pequena parcela dos casos”, explicou Velasco, ao dizer que o mapeamento ajuda a entender o que aconteceu. “Sem dúvidas, o total é muito maior do que podemos imaginar”, completou.

A repressão estatal às religiões de matriz africana abarrotou as delegacias com objetos sagrados. Velas, imagens de santos, garrafas com chás, espadas, anéis e animais empalhados são alguns exemplos do que foi recolhido como "evidência de crime". Até hoje, quase 130 anos depois do início das apreensões, 524 objetos permanecem sob custódia na reserva técnica da Polícia Civil, uma pequena construção nos fundos do estacionamento do antigo Museu da Polícia, na Rua da Relação, 40, no Rio de Janeiro. O prédio do museu é o mesmo que, a partir dos anos 1920, sediou o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) - Local onde milhares de pessoas foram presas e torturadas durante a era Vargas e ao longo da ditadura militar.

Nos próximos dias, as peças deixarão as instalações da Polícia Civil para ficar sob a guarda do Museu da República, e o Brasil, enfim, poderá estudar e conhecer as vítimas dessa perseguição. As histórias de Luzia Cardozo, Sizenando José da Silva e Tito Augusto Dinis dos Santos, que ÉPOCA revela a partir de agora.

O dia em que a polícia bateu à porta do terreiro de Luzia Cardozo só não se perdeu de vez no tempo porque o Arquivo Nacional mantém, até hoje, o processo criminal respondido por ela quando foi acusada de praticar o “baixo espiritismo”. Nas páginas, amareladas e manuscritas em letra cursiva, ficou registrada a ação violenta dos policiais.

Eram 15 horas do dia 8 de outubro de 1934 quando o investigador José Tuyuty Batalha entrou na sala dos fundos da Rua Araújo Leitão, 62, no Engenho Novo, Zona Norte do Rio. Ao entrar na sala, o policial deu de cara com uma mulher em frente ao que descreveu como um “oratório”. Era Luzia Cardozo. O policial contou que se tratava de uma mulher de 29 anos, “de cor parda” e que “fingia-se concentrada enquanto dava consultas”.

Junto a ela, na mesma sala, estava outra mulher que procurava tratamento para dois de seus filhos pequenos. As crianças estariam com sarampo. Natural do Rio de Janeiro, Cardozo foi presa em flagrante por três policiais e levada à 1ª Delegacia Auxiliar. Com ela foram apreendidas imagens de São Jorge e Santo Antônio, confeccionadas em madeira, e ainda uma cabeça de barro, alocada dentro de um vaso com farofa e pés de galinha. No interrogatório a que foi submetida, Cardozo disse que a cabeça seria do caboclo Lalu.

Os objetos foram encaminhados para a perícia, que os examinou e concluiu "positivamente" que a mãe de santo exercia a prática de “baixo espiritismo”. Ela ficou presa até pagar a fiança. Um ano depois, foi absolvida da acusação. Para isso, a defesa teve que esconder a fé dela. Argumentou que a casa onde ela estava no momento do "flagrante" era de uma madrinha que tinha morrido. Ela estaria no local apenas "conversando com vizinhos". Não se sabe o que aconteceu a Luzia Cardozo depois disso. A casa onde ela mantinha o terreiro de orações deu espaço a um pequeno prédio residencial. Além da prisão arbitrária, foram necessários 85 anos para que a cabeça do caboclo que ela incorporava finalmente deixasse de ser considerada evidência de crime. A peça é um dos objetos que resistiu ao tempo para ganhar espaço em uma prateleira no Museu da República.

“Nos registros de jornais (da época), não tanto nos processos, vamos ver que a maioria das pessoas que foram presas são negras. Não são todos os casos, mas a maioria, e isso aparece com um certo destaque, como que associando a cor da pele, o fenótipo, à criminalidade”, contou Arthur Valle, que identificou a origem da peça. A identificação ocorreu porque o processo de Luzia Cardozo inclui uma imagem da cabeça do caboclo Lalu.

A caçada a líderes religiosos de matriz africana costumava ser apresentada como episódios em que policiais “varejavam terreiros”. No dia 31 de março de 1941, o jornal "A Noite" estampou na capa da edição as manchetes “ofensiva contra os macumbeiros” e “uma centena de prisões em 48 horas”. Um dos alvos foi Sizenando José da Silva, de 60 anos, preso na Rua Cardoso de Melo, 62, em Oswaldo Cruz, também na Zona Norte do Rio. Na ocasião, ele foi apresentado como alguém que “trabalhava há 16 anos para a magia negra”. Segundos os registros, só naquele dia 78 pessoas foram presas por praticar o “baixo espiritismo”. Levadas à sede da chefia de Polícia do Distrito Federal, algumas foram obrigadas a encenar para a imprensa e para policiais presentes os rituais sagrados que faziam nos terreiros. Silva foi forçado a vestir os trajes tradicionais e empunhar uma espada e um escudo com um desenho de uma cruz.

Com uma expressão assustada, ele pôs a mão sobre a cabeça de uma mulher que, com ele, foi obrigada a demonstrar a chegada de um espírito por meio da tirada de um “ponto”, ritual típico da umbanda. A mulher precisou traçar no chão um desenho no qual a entidade deveria “baixar” e a roda começou, forçosamente, a entoar um canto sacro: "Congo, Rei Congo. Congo de maleme, Rei Congo, mia pai chegou. Ele veio de Aruanda". Eles prestaram depoimentos e, posteriormente, foram levados para a então colônia correcional de Dois Rios. O escudo usado por Silva em 1941 é outro objeto que vai deixar a guarda da Polícia Civil nos próximos dias. Foi a historiadora Ana Carolina Antão que notou a coincidência entre o objeto e a batida policial na casa de Sizenando ao fazer uma pesquisa para a Secretaria de Direitos Humanos do Estado. Antão analisou, ainda, como a própria Polícia do Distrito Federal, à época chefiada por Filinto Muller, simpático ao nazismo, usava expressões supremacistas para se referir às prisões dos pais de santo. Na prisão, o jornal "Diário de Notícias" anunciou uma “blitzkrieg contra a macumba”.

“O blitzkrieg foi uma tática militar de assalto utilizada pela Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial. A utilização desse termo, elogioso para a polícia, para se referir à ação dos agentes contra os religiosos, evidencia o clima de perseguição”, explicou Antão. “Os objetos apreendidos são fruto dessas ações violentas”, completou.

Esse ambiente de combate sistemático aos terreiros fez com que pais e mães de santo fossem alvo de policiais mais de uma vez. Tito Augusto Dinis dos Santos é um desses casos. Ainda que não tenha sido encontrado nenhum processo contra ele, a imprensa da época noticiou que Santos foi preso ao menos três vezes por policiais sob suspeita de “feitiçaria”, em 1889, 1894 e 1897. Ao arrastá-lo para a delegacia, a polícia também carregava suas peças de culto, como uma galinha preta empalhada e frascos de um pó branco.

O terreiro de Tito ficava na Rua Senador Pompeu, 165, no centro do Rio, endereço próximo a locais históricos para a população negra no Brasil. Fica a poucas quadras do Cais do Valongo, onde milhares de escravos entraram no Brasil durante a colônia. A pouco metros da Pedra do Sal, conhecida por ser um espaço do samba e do candomblé, e de diversos outros endereços que constituem a chamada "Pequena África".

Assim, durante muito tempo, os negros construíram sua vida ao redor dos locais onde foram escravizados. Mesmo um século depois, as fachadas de prédios e cortiços do fim do século XIX e do início do século XX ainda conservam as marcas da época. Nas ruas, ÉPOCA também identificou como a influência daquele tempo resistiu. “Terreiro aqui não lembro, não, mas na esquina funcionou muito tempo uma loja de macumba”, contou Milton Vieira, que trabalha há mais de 20 anos em um mercado a poucos metros de onde um dia ficou o terreiro de Santos.

Com o aumento da repressão policial na região central, em meio ao processo de modernização urbanística, os religiosos migraram da região central e passaram a refugiar os terreiros na Zona Norte ou na Baixada Fluminense, regiões ainda em processo de expansão.

São esses os relatos que a ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, de 82 anos, sempre escutou. Sentada no barracão do Ilê Axé Omolu e Oxum, que abriu há 46 anos no bairro de São Mateus, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, ela ainda se emociona quando fala em seu santo, Omolu. O orixá, conhecido como Rei da Terra, foi herança de sua avó materna. Foi dela que Mãe Meninazinha ouviu, desde pequena, a história das invasões dos terreiros de candomblé.

“A polícia entrava nos terreiros, quebrava, destruía, sequestrava os assentamentos. Até hoje você encontra no Museu da Polícia (objetos) de Seu João Alagbá e de outras casas que existiam, casas de candomblé, de umbanda”, contou ela. João Alagbá de Omolu foi um babalorixá, cujo terreiro ficava na Gamboa, centro do Rio. A casa foi fundada no fim do século XIX. A família de Mãe Meninazinha frequentava o terreiro nos anos 1920, assim que veio de Salvador para o Rio de Janeiro. Mãe Meninazinha não chegou a frequentar o terreiro de Alagbá, mas cresceu ouvindo as reclamações da avó sobre “suas coisas nas mãos da polícia”.

Autor do recém-lançado “História dos candomblés do Rio de Janeiro” e outros cinco livros sobre o tema, o historiador José Beniste relata que a memória da violência foi transmitida geração a geração e muitos candomblecistas passaram a ter medo. Ele também é um ogã no candomblé — auxilia nos rituais cantando e tocando os instrumentos, mas sem manifestar os orixás.

“Prendiam, levavam o Preto Velho incorporado e a pessoa ficava incorporada dentro do xadrez. Não desviravam. As pessoas iam presas assim mesmo. Até hoje, a religião não consegue eleger pessoas provenientes dessa fase de vida. Elas se escondem, não querem aparecer para evitar perseguições. No levantamento, dizem que são espíritas ou católicos. Têm medo de revelar suas convicções religiosas”, apontou Beniste.

No início do século XX, a Polícia Civil do Distrito Federal, inspirada pelo positivismo do filósofo Auguste Comte, queria dar ares científicos às investigações. O método deveria ser levado a cabo mesmo quando o alvo fosse a fé alheia. Por isso, durante muitos anos, as peças apreendidas nos terreiros foram estudadas como exemplos do início do trabalho pericial na Escola de Polícia, criada em 1912. Posteriormente, essas peças foram incorporadas de modo informal ao patrimônio do Museu da Polícia, que abrigava todo tipo de objeto apreendido pelos agentes.

Em 1938, sem uma explicação clara, a Polícia Civil decidiu tombar os objetos. Eles se tornariam o primeiro registro de tombamento do livro do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — agora transformado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Renato Machado, procurador da República no Rio, que investigou o caso no Ministério Público Federal (MPF) do Rio, contou que, ao examinar os documentos históricos, verificou que as operações policiais foram executadas de modo ilegal na época. “Os objetos foram recolhidos de forma completamente irregular, mesmo à luz da legislação da época. Eles (policiais) simplesmente invadiram os terreiros e apreenderam os objetos sem ter um processo criminal. Muitas dessas pessoas não foram submetidas ao devido processo legal, não foram julgadas por isso. E, para dar uma aparência de legalidade a essa propriedade ilícita, a polícia entrou com um processo de tombamento”, explicou Machado.

Dois anos depois, em 1942, as peças foram reunidas na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações, nos fundos do terceiro andar do imponente prédio da chefia de Polícia, na Rua da Relação. Dali em diante, os documentos oficiais do estado passaram a se referir ao conjunto de peças como Museu de Magia Negra.

Quase 30 anos depois, em 1972, a sede do museu foi transferida para a Rua Frei Caneca, onde funcionou um complexo penitenciário do estado que terminou implodido em 2010. Nesse período, foi montada uma exposição no local e alguns pesquisadores até iniciaram estudos sobre os objetos. A partir das imagens feitas por Luiz Alphonsus, em 1979, ficou conhecida uma estátua de Mefistófeles — que representaria Exu, o orixá mensageiro do povo iorubá.

Ao verificar as imagens de Alphonsus e jornais dos anos 1920, o pesquisador Arthur Valle identificou que essa peça foi apreendida em 11 de junho de 1929. Não há, porém, referência ao nome do dono original. Para Valle, as fotografias da apreensão e da exposição, indicam que os policiais fizeram mudanças no objeto para “aumentar a dramaticidade da imagem” e dar a ele uma impressão sombria. No entanto, em 1989, um incêndio nas instalações do museu na Rua Frei Caneca destruiu parte do acervo. Entre as peças, a estátua de Mefistófeles. No ano seguinte, o museu e a coleção retornaram à sede da Rua da Relação, e as peças que sobreviveram ao fogo ficaram, em parte, expostas até 1999. No entanto, em 2010, o museu foi fechado para reformas e jamais reabriu.

A falta de acesso às peças foi avolumando críticas de religiosos e integrantes do movimento negro em relação à polícia. Segundo o historiador Arthur Valle, há pedidos de restituição das peças desde os anos 1970. A própria Mãe Meninazinha de Oxum disse que já havia feito campanhas pela retirada dos objetos da sede da polícia a partir dessa época. Ela é uma das principais vozes da campanha Liberte o Nosso Sagrado, que também é formada por outras lideranças religiosas, além de políticos e integrantes de movimentos sociais. Para ela, retirar os objetos da antiga sede do Dops é uma missão de vida. “Tem de encontrar um lugar digno para que as pessoas possam visitar e conhecer a história do sagrado”, desabafou.

Essa queixa antiga dos religiosos foi o que originou a pesquisa de Valquíria Velasco. Praticante tanto da umbanda como do candomblé, ela disse que cresceu ouvindo “os mais velhos” contarem as memórias do tempo em que a polícia prendia quem frequentava terreiro. Há três anos, identificou uma reportagem, de 1994, quando o então candidato à Presidência da República pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva, em visita ao terreiro de Mãe Nitinha no Rio, afirmou que, se eleito, iria “libertar as peças do Museu de Magia Negra da Polícia”. “Isso me instigou a pesquisar o que era esse museu”, contou Velasco. Mãe Nitinha de Oxum, porém, não viveu para ver esse momento. Ela morreu em 2008.

Depois que o Museu da Polícia fechou em 2010, as peças então foram guardadas em caixas e apenas uma pequena parte foi exposta na área da reserva técnica por algum tempo. A partir desse período, a Polícia Civil recebeu sucessivas reclamações por manter os objetos como “evidência de crime” e pelas condições como guardava o material. Sobretudo, o acesso das peças aos religiosos se tornou uma contestação frequente.

Jorge Santana, historiador e assessor do deputado estadual Flávio Serafini (PSOL-RJ), acompanhou todo o processo e relembra de uma inspeção no museu em 2017 que, em suas palavras, “ foi um desconforto muito grande”. Uma das lideranças religiosas pediu que o policial não abrisse as caixas porque os objetos eram sagrados e não deveriam ser tocados por ele. Segundo Santana, o policial respondeu que era “uma palhaçada”. “Todos nós da campanha (Liberte o Sagrado) ficamos muito desconfortáveis, nos sentimos como familiares indo visitar seus parentes presos na cadeia”, desabafou ele.

Além disso, diversas peças corriam o risco de deterioração pelo modo como estavam armazenadas. A maioria possui quase 100 anos e foi feita a partir de materiais orgânicos, mas estava guardada em caixas de papelão em uma sala exposta constantemente ao sol.

A situação foi denunciada por parlamentares do PSOL ao MPF, que abriu uma Ação Civil Pública. O procurador Renato Machado relatou que durante muito tempo foi difícil obter o mínimo de informações da Polícia Civil. Foi apenas com requisições coercitivas que o MPF conseguiu dar andamento ao caso.

“Falavam coisas absurdas nas reuniões. O pessoal das religiões ficava revoltado, criou-se uma polarização no momento inicial de negociação. Isso aumentou a resistência dos dois lados”, relatou Machado. Em uma audiência pública, um policial comparou o pedido de transferência dos objetos do Museu da Polícia para outra instituição com os saques que os nazistas fizeram em museus durante a Segunda Guerra Mundial.

Todos os que acompanharam o desenrolar das negociações contam que a situação mudou com a chegada da delegada Gisele Faro, em abril deste ano. Há 17 anos na corporação, ela carrega na família tanto a história da polícia como as sequelas da escravidão. Sentada em uma cadeira simples em sua sala, ela explicou que desconhecia a apreensão das peças e as batidas em terreiros de umbanda e candomblé. Ao falar de como se sentiu ao descobrir o passado, ela se emocionou.

“O que mexeu comigo é que minha mãe é mulata, minha avó e meu avô materno eram negros. Com essa história eu volto no tempo. Converso com minha filha e digo que, se não tivesse havido a alforria, nós também teríamos sido escravos. Teríamos tido nossas coisas apreendidas também. Para mim está sendo importante participar desse contexto. Eu sou uma pessoa de muita fé, acredito que Deus me colocou aqui para fazer a coisa certa, para me colocar no lugar do outro”, contou a delegada, que possui cabelos castanhos encaracolados, lábios grossos, mas pele clara.

Faro disse que, ao ser transferida para dirigir o museu, ficou muito feliz. O pai foi inspetor e a mãe escrevente e ela, ainda muito pequena, frequentava o prédio constantemente na infância. Em suas memórias, é somente o lugar onde visitava os pais, e não o cárcere de presos políticos. Mas ela não nega a história do local e se sensibiliza com o sofrimento dos religiosos de matriz africana.

“Isso vinha de uma época anterior da polícia, de um processo. A responsabilidade que senti que tinha quando vi o acervo era o de conduzir isso até o final da melhor forma possível. Estamos devolvendo objetos que são caros às lideranças religiosas. Isso foi o passado da polícia, somos diferentes hoje em dia. Quando deito a cabeça no travesseiro, sei que estou fazendo a coisa certa”, completou.

O processo pelo qual o Rio está passando já ocorreu em outros estados, o que se tornou até um precedente importante para a transferência do acervo. Em 2015, após um acordo fechado entre o Instituto Geográfico Histórico da Bahia e o terreiro de Mokambo, foi feita uma inédita restituição de uma “cadeira de mando” apreendida nos anos de repressão estatal naquele estado.

Na década de 1930, uma operação da Delegacia de Jogos e Costumes da Bahia recolheu o móvel, espécie de trono onde o líder religioso se senta durante as cerimônias, usado pelo caboclo Jubiabá. O objeto pertencia a Severiano Manuel de Abreu, babalorixá e capitão do exército baiano que acabou conhecido pelo nome do caboclo que incorporava. Depois de ficar apreendida por 95 anos, a cadeira de Jubiabá foi devolvida a seu terreiro de origem em regime de comodato.

Figura de prestígio em Salvador, Jubiabá recebia muitas visitas em seu terreiro, no Alto da Cruz do Cosme, inclusive de membros da elite local. Tornou-se personagem de Jorge Amado no livro que carrega seu nome, escrito quando o autor tinha apenas 23 anos e posteriormente adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos. Severiano Manuel de Abreu morreu dois anos depois da publicação do livro, numa época em que a perseguição religiosa na Bahia não dava sinais de alívio. A operação foi comandada pelo oficial Pedro Beloso Gordilho, ele mesmo também personagem de Jorge Amado em outro livro, Tenda dos Milagres (1969), no qual encarna o policial Pedrito Gordo, que persegue o candomblé por puro gosto.

Outros estados do Nordeste tiveram casos parecidos. Em 2013, o Instituto de Patrimônio Histórico, Artístico e Natural de Alagoas recebeu oficialmente peças que foram preservadas após o “Dia do Quebra”, evento de intolerância religiosa ocorrido em fevereiro de 1912, em Maceió, quando foram destruídas todas as casas de culto afro-brasileiro na capital. A Coleção Perseverança, como ficou conhecida, é considerada uma das mais importantes e raras do país.

De procedência africana em sua maioria, uma das peças consideradas de maior valor da coleção é o capacete Ogum-China. Coberto com búzios africanos e conchas brancas, ele chegou a ser avaliado, em 1912, em 500 mil réis. Em função do contexto de repressão estatal em que o acervo ficou por tanto tempo e das relações com o período histórico, o Museu da República acabou como um consenso para o destino das peças. Para o diretor da instituição, Mário Chagas, a transferência corrige um crime cometido em outro tempo.

“É importante que o acervo venha para cá, pois é resultado de uma ação do Estado. Essas religiões foram perseguidas e combatidas pelo Estado, é emblemático fazer essa reparação. Isso não interessa apenas aos praticantes daquela religião, interessa à sociedade. Trata-se, na verdade, de um gesto de cidadania e de recomposição de direitos”, observou Chagas.

Se antes as religiões de matriz africana eram perseguidas pelas forças do Estado, hoje o inimigo é outro. Mesmo que seja crime a discriminação ou o preconceito contra religiões, a violência continua. Dados de 2018 do Ministério dos Direitos Humanos mostram que o país registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 17 horas. No Rio de Janeiro a situação não é diferente: o estado possui 12% de todas as denúncias do país. Sendo que as principais vítimas são os seguidores de religiões de matriz africana. Do total de registros entre 2011 e 2018, 54% das 244 denúncias são relacionadas a cultos como a umbanda e o candomblé.

O professor Bruno Teixeira Pereira, de 37 anos, sentiu na pele as histórias de perseguição que ouviu da avó desde criança. Em 2010, ele se tornou o pai de santo Doté Bruno Ti Tobossy. Doté e abriu as portas de um terreiro em Nova Iguaçu, dando sequência às tradições e à fé que aprendeu com a avó. Mas, logo depois que o barracão do terreiro abriu, começaram ataques de todos os tipos na porta do local. Por três vezes, o espaço foi destruído.

Na primeira vez, em 2010, em um momento no qual o local estava vazio, desconhecidos forçaram a entrada por uma janela e quebraram toda a área de culto. Nem sequer tocaram em eletrodomésticos novos que estavam ali. Os santos foram o alvo exclusivo. Tudo foi refeito e, quatro anos depois, a ameaça foi ainda mais grave. Também durante um momento em que não havia ninguém, alguém ateou fogo na área de culto. O último ataque foi em 2017, quando pessoas invadiram o terreiro e roubaram todos os santos do oratório.

Doté Bruno Ti Tobossy disse que o barração ficava próximo a igrejas neopentecostais, e, sempre que ele fazia celebrações, vinham pessoas distribuir panfletos na porta do terreiro. “Normalmente os ataques ocorriam depois de manifestações em nossas portas, dizendo que ali era uma casa de encosto, um local de impuros, pessoas nojentas”, desabafou ele, que diz não gostar de recordar dos xingamentos. “As palavras têm poder”, refletiu.

O espaço em Nova Iguaçu, na baixada fluminense, era especial pelo papel que sua avó teve em sua construção, mas Doté Bruno decidiu deixá-lo. Ele disse que registrou na delegacia os dois primeiros ataques, mas os inquéritos não foram adiante. Só o chamaram para depor uma vez. Desde o ano passado, o terreiro está em Belford Roxo, onde convive em paz com os vizinhos. “A nova casa é um recomeço”, disse. “Eu não fui o primeiro e não fui o último. Sempre tem alguém sofrendo um ataque. É uma religião de resistência, resistir, sim, por medo de retorno de coisas não boas do passado”, defendeu.

Para Doté Bruno, a única coisa que ele não pode viver sem é a manifestação de sua fé. “O candomblé para mim é o ar que eu respiro. A primeira coisa que faço em meu dia quando acordo é conversar com os meus voduns e também é a última que faço antes de dormir. É uma religião em que respeitamos nossos mais velhos. Eles são detentores de um saber que ninguém pode medir”, explicou. Voduns são divindades do povo da tradição Jeje com origem no Benim.

Somente até setembro de 2019, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), que reúne membros de várias religiões e representantes do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, contabilizou 176 terreiros fechados após ataques ou ameaças de traficantes. No ano passado, a comissão não recebeu nem 100 denúncias. Mas a própria CCIR faz o alerta: em muitos casos não há registros, como boletins de ocorrência, desses ataques. Isso porque boa parte deles foram ameaças veladas comandadas por um novo inimigo: o tráfico.

De fato, os dados da Secretaria de Estado de Polícia Civil, obtidos via Lei de Acesso à Informação, são mais discretos. Segundo eles, desde 2011 foram registrados 77 casos de racismo (discriminação ou preconceito de raça, de cor, etnia, religião ou procedência nacional) em instituições religiosas no estado. Hoje, a maior parte deles é de responsabilidade da Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, a Decradi, inaugurada em dezembro de 2018.

Segundo os números da Polícia Civil, por exemplo, dos 24 casos de racismo dentro de instituições religiosas que aconteceram no estado neste ano, mais da metade (54%) está concentrada no bairro de Parque Paulista, em Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

É lá que a Polícia Civil investiga a ação de um grupo de traficantes que atua contra terreiros de religiões de matriz africana na região. Um dos episódios investigados aconteceu em julho, quando traficantes armados invadiram um centro e obrigaram a sacerdotisa responsável a destruir todos os símbolos que representavam os orixás, ameaçando voltar ao local para atear fogo no terreiro. Um caso semelhante ocorreu dois anos antes, em 2017, quando criminosos armados invadiram uma sessão em um barracão, no bairro Ambaí, na Baixada Fluminense, e obrigaram a sacerdotisa a destruir as próprias imagens.

Para o Babalawô Ivanir dos Santos, Doutor em História pela UFRJ, e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), apesar das iniciativas nos últimos anos falta efetividade na punição às agressões aos terreiros e religiosos. “Os ataques às religiões de matrizes africanas são um ataque ao estado laico, à democracia, às liberdades, às pluralidade e humanidades”, afirma. E o ambiente de conflito é acentuado quando as autoridades não condenam publicamente a situação. “Quando uma autoridade pública fala que o Brasil é um país ocidental cristão e que a minoria tem que se adequar à maioria, é um incentivo à intolerância religiosa. Ou você se adequa e se converte ou sai do país. Isso acaba propiciando poder aos setores de intolerância”, critica Ivanir.