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True Story Award 2023

Amas na Cova da Moura. “Se eu não existo, as mães não podem trabalhar e as crianças é que vão sofrer”

Desde cedo na vida das famílias da Cova da Moura, a pobreza obriga a que os pais tenham de escolher trabalhar e deixar os filhos recém-nascidos sozinhos. Emília, Lucinda e Luísa são três das muitas amas do bairro, que salvam gerações inteiras. As histórias do bairro nas histórias delas.

Lisboa sempre pareceu outra coisa a Emília. Uma coisa longe do bairro dela, em quilómetros e em tudo o resto. Ainda se lembra de ser miúda e de passar as noites no terraço, com as amigas, “sentadas, a contar as casas que havia em Lisboa”. “Uma, duas, três… Tantas”. Uma cidade pintada de luzes aos olhos desta moradora da Cova da Moura, na Amadora, aqui chegada em 1978 para viver numa pequena barraca de madeira “construída com as mãos” do pai.

Tinha 12 anos e vinha à procura da vida que nem Cabo-Verde (onde nasceu) nem Angola lhe haviam de dar.

A caminho do bairro, a apresentação é feita logo à saída da autoestrada. A poucos quilómetros da Avenida da República, que leva até às ruas da Cova da Moura, um aviso: “Zona vigiada” por câmaras. Se o bairro dependesse deste pequeno placard, tudo o que se saberia dele é que é considerado perigoso e merecedor de vigilância.

“Tudo se fala da Cova da Moura”, a maioria “mal, muito mal”, lamenta Emília. Há anos que os jornais fazem manchetes sobre operações policiais para combate ao narcotráfico nestas ruas e a relação hostil entre as autoridades e a população até já mereceu assento em tribunal.

Mas a história da Cova da Moura é mais do que se conta. Emília Alves, 58 anos, olha de forma diferente para o bairro onde vive. Viver aqui é “muito bom”, tão bom que “não trocaria por Lisboa nem mais bairro nenhum”. É pela comunidade, confessa. Quer isto dizer que são raras as pessoas que cuidam apenas daquelas com quem partilham teto. A Cova da Moura é uma grande casa, a céu aberto. “Toda a gente cuida de toda a gente.”

Emília fez disso profissão.

Agora a viver numa moradia erguida em tijolo e cimento, Emília é há 18 anos ama de crianças que nascem na Cova da Moura. Ela e outras 11 mulheres, ao abrigo de um acordo com a associação Moinho da Juventude.

Estão no início das vidas destas crianças e nunca mais as largam, muito pelos laços que criam. Trabalham todos os dias para fazer com que, um dia, elas cheguem a manchetes dos jornais, mas pelos melhores motivos.

E para que Lisboa, de noite ou de dia, já não lhes pareça tão longe.

“Quando as pessoas apelidam os miúdos de bandidos, de delinquentes, elas não pensam, não perguntam, como é que eles cresceram? Quem os acompanhou? Quem os educou? Quem esteve lá, presente?”, questiona a ama.

Afinal, dentro de portas, a maioria destas famílias faz escolhas difíceis desde cedo: “Ou não ir trabalhar e ficar com os filhos, porque pagar a alguém para ficar com eles fica caro; ou pôr comida na mesa, mas deixá-los sozinhos. E há muitos que ficam sozinhos durante horas, ainda bebés.”

Era assim sobretudo antes de as amas do Moinho da Juventude surgirem, no arranque do milénio. As crianças até aos três anos de idade (período que antecede o Jardim de Infância), tinham de procurar opções fora do bairro, geralmente mais caras. “Quem vive aqui não tem como pagar isso.” São, na generalidade, trabalhadores precários. Levantam-se de madrugada, uns para limpar escritórios, outros para trabalhar em cozinhas, alguns como serventes nas obras.

“Não é preconceito, é mesmo assim”, diz Emília.

Mas as crianças são cada vez mais e as amas cada vez menos. O futuro das novas gerações da Cova da Moura enfrenta um desafio: estas cuidadoras só podem trabalhar a recibos verdes e, se encontram um trabalho melhor, a missão de cuidar fica para trás.

As crianças do bairro também.

I - O bairro que acorda mais cedo

Na Cova da Moura, o sol não dita nada. Ainda nem são seis da manhã e, apesar da parca luz nas ruas, há gente a descer o bairro de malas às costas ou sacos na mão. As chaves chocalham nos bolsos e, a esta hora, é este o som mais alto que se ouve nas redondezas. Os cafés abrem as portas, acendem as luzes. Há clientes a acabar o pequeno-almoço, antes de seguirem para o comboio ou o autocarro, que dentro de minutos estarão cheios.

À varanda, ainda de robe sobre o corpo, Nilson faz-nos sinal com a lanterna do telemóvel. Seguimos casa adentro. Ele e a namorada, Leisa, já se preparam para acordar as crianças.

Nas paredes, nas escadas e até no aquário, motas e bicicletas de BTT fazem a decoração da casa e adivinha-se, desde logo, uma paixão. Mas, se a informação é pouca, uma exposição no hall de entrada faz as honras: ali, estão pendurados os cartões de residência de toda a família imigrada e até a credencial das Forças Armadas de Cabo-Verde de Nilson Domingos. O país onde ele e Leisa nasceram, embora só se tenham conhecido em Portugal, para onde vieram em 2017.

6h20 e é “hora de acordar os miúdos”. De manhã, a vida deste casal é como uma corrida de estafetas. Leisa acorda Alana, de dois anos, e David, de seis. Prepara o pequeno-almoço de todos e as marmitas. Mas, depois, passa o testemunho ao pai, porque às 8h30 tem de se apresentar ao serviço, numa cozinha do Rato, em Lisboa.

Nilson é pintor em Tires. Trabalha na área da manutenção há cinco anos. Em Cabo-Verde, diz ter sido mecânico de automóveis numa oficina, onde ganhava o equivalente a 250 euros – pouco mais do que o ordenado mínimo (13 mil escudos cabo-verdianos, 118 euros). Um salário que dava apenas para sobreviver, diz, encolhendo os ombros.

Vai todos os dias de carro para o trabalho, para que consiga levar as crianças à creche e à ama. Se Nilson arriscasse a ir de transportes, elas teriam de ficar ao encargo de algum vizinho até a casa da ama abrir (8h00). “Demoro duas horas para chegar ao trabalho de transportes. Antes, ia. Apanhava aqui o autocarro em Benfica, ia para Algés, pegava o comboio para Carcavelos, pegava outro autocarro até Tires e depois andava 15 minutos a pé. E se perder um…”

Se perder um, perde o dia de trabalho. Um atrás do outro, os autocarros “iam sempre sobrelotados”, lembra. “Viste quando estavas aí parada… a quantidade de gente que estava a descer. Se fores à estação, vais ver, como a plataforma está cheia de gente.”

Entretanto, Alana já está a espernear na cama. “É a mais preguiçosa e bagunceira” dos dois irmãos, confidencia a mãe. Mais um dia a acordar sem meia no pé. “É sempre a mesma coisa, Alana.” Depois do sermão, só um nome a faz ter vontade de saltar da cama: Lucinda.

Lucinda tem 71 anos, também mora neste bairro e há um ano que é ama de Alana. “Faz toda a diferença” na vida dela, desabafa Leisa, que sabe que divide o coração da filha com a ama, “com quem tem tanta afinidade”.

Antes de Lucinda, a vida era mais difícil de levar.

Quando David chegou de Cabo-Verde para vir viver com o pai, foi Leisa (não mãe biológica, mas namorada do pai) quem teve que ficar três meses com ele em casa. “Fiquei sem trabalhar, porque não havia creche, não havia ama, não havia ninguém. Não tivemos outra escolha.” E bem que pesou no rendimento familiar, lembra. Era Nilson quem ganhava mais, por isso, definiram que seria Leisa a deixar de trabalhar e ficar em casa.

Assim que Alana nasceu, há dois anos, o fantasma desses tempos voltou.

Leisa diz não ter perdido muito tempo até ir ao Moinho da Juventude, a associação com sede no bairro, para inscrever a filha no programa de apoio infantil – que vai desde o serviço de amas até ao Jardim de Infância. Mas as vagas estavam todas preenchidas. Cada ama só pode ter até quatro crianças de cada vez e já não eram tantas. Esperaram até haver uma desistência e lá chamaram Alana para a ama Lucinda. “Se não houvesse ama, seria menos um rendimento em casa.”

Enquanto esperavam por uma vaga, procuraram uma ama fora do bairro. “Pagávamos 250 euros. 250 euros”, repete-se Leisa, como que a frisar a tragédia do que conta. “Esteve lá três meses e não aguentámos mais.”

Já na Lucinda passaram a pagar 96 euros e, atualmente, não têm qualquer encargo, desde que aprovada a lei que prevê a universalidade das creches, onde está contemplado o projeto das amas. “Só levamos fraldas e toalhitas. De resto, ela trata de tudo.”

“Já está, Alana?”, Leisa confere se está tudo em ordem antes de sair. Alana corre.

“Onde vais?”. “Cabo-Verde”, responde a pequena.

É a terra que viu nascer os pais – a mãe na Bela Vista, o pai em São Vicente. Viveram sempre a 20 minutos um do outro, mas foi preciso migrarem para Portugal e uma festa na Cova da Moura para cruzarem destinos. Chegaram ambos em 2017, apenas com três meses de diferença, mas à procura do mesmo: uma vida sem a corda ao pescoço.

Cá, Nilson já tinha a mãe e uma irmã, que assentaram em Portugal e no bairro, depois de virem à procura de um tratamento de saúde. “Aqui é outra vida. Aqui, você tem chance de adquirir coisas que nunca ia ter lá em Cabo-Verde.” Por exemplo? “Está ali o exemplo”, aponta para a bicicleta vistosa, de roda grossa, estacionada no hall de entrada.

II - O império das amas

8h00 da manhã. As barbearias já abriram portas e as mulheres já escavacam o osso do atum e vendem o peixe na rua, de avental salpicado a vermelho. Na rua, há agora mais barulho. As crianças estão acordadas. É altura de apertar os casacos e prego a fundo até casa da Lucinda, a poucos metros dali.

Alana chega à porta e gasta o nome da ama em segundos. É a primeira a chegar, como sempre. Ainda há pouco saiu de sua casa, mas é como se agora tivesse chegado a casa também. “Eles vivem como se a casa fosse deles”, confessa Lucinda.

Há 20 anos que abre as portas de casa para receber e cuidar de crianças. Outros 20 já passados neste bairro, onde se instalou, também ela vinda de Cabo-Verde, Santiago, à procura de trabalho. O marido veio à frente. “Quando ele se orientou, arranjou uma casinha aqui e eu vim.” Era uma barraquinha no outro lado do bairro.

Cuidar dos mais pequenos, no entanto, não lhe é tarefa estranha desde os sete anos. Já em Cabo-Verde e ainda miúda, “gostava de ajudar os pais com crianças”, embora nunca tivesse imaginado fazer disso profissão.

Quando chegou a Portugal, tornou-se empregada de limpeza em escritórios. Saía às 5h00 da manhã e ia a pé até Alfragide.

Foi em 1995 que a associação Moinho da Juventude criou um Jardim de Infância e, em 2000, um serviço para apoiar as crianças desde o nascimento. Uma ideia para cuidar dos mais novos, que são tantos neste bairros. Criaram as amas informais, mulheres que, nas suas casas, cuidavam de crianças até aos três anos. E convidaram Lucinda que, reticente, recusou à primeira e aceitou à segunda. Ainda que com a “a condição de, um ano depois, deixar de ser a recibos verdes”. “Olha, ainda estamos a passar recibo. Isso é que foi um bocado duro para nós.”

Ao programa das amas chamaram Creche Familiar, o passo imediatamente antes da creche nas instalações físicas do bairro. Mas este é o único serviço infantil em que os trabalhadores não têm contratos. Apesar de um acordo entre o Moinho da Juventude e a Segurança Social para o reconhecimento destas profissões, os limites legais não permitem a contratualização da profissão na associação, ainda que esta garanta subsídios de férias a todas.

Já se ouve barulho na casa de Emília Alves, 58 anos, a uns metros da casa de Lucinda. É o choro, são as gargalhadas e as birras das crianças das quais ela cuida, mas também as outras ao encargo da filha, na mesma casa, que já assume o legado da mãe.

A filha trabalha na sala e Emília numa outra de que fez creche. Lá dentro, três berços, mesas, cadeiras em ponto pequeno, brinquedos, muitos brinquedos, pilhas de fraldas e toalhetes. E uma mulher de mangas sempre arregaçadas e de colher de iogurte na mão.

Emília é, na verdade, nome para os estranhos. Para os mais pequenos que aqui passam o dia, ela é a “avó”.

Confirmou-se na primeira vez que nos cruzámos com Emília. Naquele dia, encontrámo-nos às portas do bairro. Vinha com um dos netos pela mão, mas não demorou nem duas ruas até que tantas outras crianças viessem ao seu encontro para lhe chamar de “avó” também. “Já perdi a conta a quantos são. Há nove que são de sangue. Depois, há muitos outros. Onde eu vivo, há um neto, há alguém que chama ‘avó’.”

São ecos de outros tempos. Há muitos anos, nesta mesma casa, a mãe de Emília fez nascer uma das primeiras creches clandestinas do bairro. “A minha mãe sempre trabalhou na limpeza e, a partir de uma certa idade, começou a ficar cansada. Como havia sempre dificuldade de mães que queriam ir trabalhar e não podiam porque não tinham onde deixar os filhos – muitos ficavam dentro de casa, sozinhos -, ela abriu uma creche.”

Era, na altura, um bairro menos populoso e, ainda assim, com “muita criança”. “Se cada mãe tivesse 7 filhos como a minha…”.

São inúmeros os relatos destas amas clandestinas no bairro, mulheres que, por conta própria e sem supervisão, cuidavam de crianças. Artigos de jornais datados dos anos 1990 e do início do milénio davam conta de espaços sem luz, sem brinquedos, e sobrelotados. Amas com perto de 30 crianças cada, por 15 contos por mês. Um cenário lembrado no estudo da investigadora Irene Delettrez, para a Universidade de Lisboa, ao falar das “amas informais que recebiam crianças em sua casa em condições, por vezes, muito precárias”.

O projeto Creche Familiar, do Moinho da Juventude, veio responder a esta precariedade e permitir maior segurança no tratamento da criança, escreve a investigadora. “Veio possibilitar o acesso a um salário e a apoio para realização deste trabalho que passou a ser profissionalizado, supervisionado e integrado numa rede de amas que retirou do isolamento o trabalho destas mulheres.”

Emília nasceu consciente das dificuldades a que as amas estão sujeitas, mesmo depois de o programa do Moinho da Juventude ter sido inaugurado. Mas o legado e o sentido de missão falaram mais alto.

De qualquer das formas, ela já não vive “sem esta barulheira”. Uma chora, outro grita, nem a dormir lhe dão descanso. É assim, das 7h00 da manhã até às 16h00. E o silêncio já lhe faz confusão. “Às vezes, acordo ao sábado meio desorientada, a ouvir choro que eu não sei de onde vem. Levanto-me e vou procurar… ‘Não, Emília, hoje é sábado’”, ri. As saudades apertam e há até dias em que bate à porta “dos meninos” para os levar a passear.

Mas os dias já foram mais solitários, até mais duros. Emília trabalha desde os 14 anos, quando ia ajudar a mãe nas limpezas. “Antes de ir para a escola, ia trabalhar. Depois, vinha do trabalho, levava os meus irmãos para a escola, ia eu para a escola, vinha, ia buscar os meus irmãos e, depois, vinha para casa e tinha trabalho para fazer. Não ia ganhar, mas ia ajudar.”

Nos primeiros três anos ao serviço do Moinho da Juventude, manteve dois escritórios para limpar, de madrugada e ao final da tarde. Nove horas dedicadas à associação, outras seis à limpeza. “Precisava do dinheiro”, mas não duraria mais do que estes três anos. Até o cansaço se ter apoderado dela.

Com crianças, os dias são mais imprevisíveis. Ora Kevin hoje está irrequieto e impossível de adormecer, ora a Neca mais mal disposta e perentória contra a comida. Mas Emília confessa ter antídotos para as imprevisibilidades. A música é um deles e a ama não a dispensa, na hora de calar um choro. De repente, o corpo hirto onde caem lágrimas é um bailarino a sorrir. Outras vezes, muitas vezes, o olhar dela basta. Um olhar sereno, mas calado e persistente, e o choro já não sufoca. “Eu acho que eles sentem a minha calma e acalmam-se também”, conta, como quem explica a ciência por trás de um feitiço.

Diz ela que “o carinho deles” é a retribuição de qualquer esforço diário. “Mesmo quando se tornam adultos. Tenho miúdos que já foram para França, tenho outros no Luxemburgo, lá para a Holanda… e quando vêm de férias vêm aqui bater… à porta da avó Emília”, fazendo ciúmes às que são biológicas, confessa.

Cuidar é uma arte que se repete para Emília, todos os dias, de madrugada.

E esta ama sabe o que cuidar significa para as tantas famílias do bairro que recorrem à creche familiar. Naquela casa, os pais encontram uma forma de sobrevivência diária, em vez de viverem quase ligados às máquinas. “Se eu arranjar outro trabalho, muita gente fica desempregada. Ou, então, as crianças é que vão sofrer.”

Porque ficariam sozinhas, como antes? “Exatamente.”

III - Educar no bairro mal-afamado

Tum. Tum. Tum. Com força e sem parar. “Maria” está vergada sobre um pequeno tronco de madeira onde ataca o atum, de machado na mão, e sem sequer olhar o peixe. Passa aqui os dias, ao lado de uma carrinha de mala aberta, onde transporta o peixe da lota até ao bairro. Caixas e caixas de esferovite carregadas de peixe, na rua, sobre o alcatrão. “Maria” olha atenta e curiosa à volta dela porque todos os dias são diferentes neste bairro e não quer perder nada.

Na Cova da Moura, há sempre alguma coisa que parece estar fora do sítio onde nos habituamos a vê-la. Não é só o peixe a ser esventrado na rua. As pessoas sentam-se e conversam entre cadeiras de escritório pousadas cá fora, há mochilas erguidas no topo das chaminés, e almofadas a passear na moleira da cabeça de mulheres, que o fazem quase de forma heroica.

Estranha-se tudo o que é diferente e a Cova da Moura é muito diferente, até de outros bairros com contextos semelhantes.

São 16 hectares às portas de Lisboa. Um terreno avaliado em milhões, de propriedade privada e ocupado na década de 1970 por famílias sobretudo vindas das ex-colónias. As casas, primeiro apenas barracas, nunca foram reconhecidas como legais pela família Canas, proprietária destes hectares há décadas. Mas a Câmara Municipal da Amadora viu-as como parte do território, fez obras de saneamento e até cobra IMI e água aos moradores.

O que é certo é que os anos de batalha entre as autoridades locais, o proprietário do terreno e os habitantes resultaram num maior isolamento do bairro que, pelas características pobres, já começou marginalizado.

Diz Luísa Magalhães, 57 anos, que “a Cova da Moura não é má, como dizem”. “Há pessoas más e há pessoas boas. Mas somos quase todos esquecidos pelo resto”, desabafa a moradora e também ama do bairro.

Por isso, educar desde cedo é um desafio maior num bairro com má fama e ela quis fazer parte dessa missão. Pela ausência dos pais, que combinam diferentes trabalhos, de manhã à noite, “muitas são deixadas sem eira nem beira”, lembra Luísa. Passam o dia nas ruas, à mercê de si próprios. “São crianças que deviam ter ocupações neste período escolar – ou estão a estudar ou deveriam estar em alguma formação. Não deviam estar na rua. Não faz sentido. O país cresce, o país desenvolve, acontece tanta coisa, mas não acontece o que tem que acontecer: a educação da criança não sai do lugar, não sai do papel.”

Aos filhos, três, levou-os pela mão à escola até serem jovens adultos, “o que não é normal aqui”, onde as crianças vão sozinhas para todo o lado. Um “não acabou os estudos”, mas foi “porque não quis”, as duas filhas estão formadas. “Aquela é professora, esta é osteopata”, esboça um sorriso tímido, como quem esconde vaidade, e aponta para a fotografia de duas mulheres de fato preto académico.

Dá importância à educação porque na dela, o fim foi-lhe roubado. Nasceu em São Tomé e Príncipe e migrou para o Portugal em 1985, já atrás da mãe. Tinha 20 e poucos anos, uma criança de dois anos ao colo e um curso de enfermagem que nunca conseguiu exercer em Portugal.

A primeira impressão não foi a esperada. “Cheguei aqui e pensei: é isto que se chama Lisboa, Portugal? Isto mais parecia uma roça, com muito capim, palhas e não sei quê. Isto aqui era muita palha. ‘Meu Deus! Mais valia estar em São Tomé’, pensei.”

“Quis andar para a frente”, assumir a decisão de vir para junto da mãe. “Só que eu não andei para a frente, eu fiquei a marcar passo. Vinha com sonhos e os meus sonhos caíram todos por terra…”

Exercera enfermagem “por pouco tempo”. Chegada a Portugal, faltou-lhe a equivalência, a documentação. “Um monte de atrapalhações”, conta. “Depois de enfermagem, o meu sonho era mesmo estudar e fazer Medicina.” Nem uma coisa nem outra e lembra-o com o peso do mundo nos olhos.

Mas cuidar não saiu do dicionário de Luísa.

Às 9h00 em ponto, o pequeno William, de três anos, bate à porta. “Ai, parece que ficam a sonhar comigo. Vêm logo cedo. ‘A Tata, a Tata’! Chamam-me Tata.” Depois, a Priscila, a seguir o Ken, até a sala estar completa. “É uma alegria logo pela manhã”, sorri.

Tornou-se ama do Moinho, depois de anos à frente da gestão de um café no bairro, em 2006. “O café tinha movimento mais da parte da tarde. Os trabalhadores vinham à tardinha, pediam a cerveja, o petisco… Então, pensei no que é que eu ia fazer de manhã.” Gostava de crianças e passou a dedicar-lhe, primeiro, a manhã, depois o tempo inteiro. Sobretudo depois de uma doença autoimune a ter afetado.

Faz por dar lições às crianças todos os dias. “Gosto de puxar por eles, faz-lhes bem. Ensino-lhes a cor, os números.” E até como o crioulo que ouvem em casa não pode ser a única língua deles, cidadãos que ela quer que sejam do mundo. “Eu não falo crioulo, na minha casa não se fala crioulo. Mas os pais (deles) falam. O William quando se expressa fala crioulo. O Ken fala crioulo. A Priscila fala uma e outra. Mas eu falo português. Quero que os outros, fora do bairro, os percebam.”

É assim que pensa também a ama Lucinda, cujo trabalho ainda impressiona os pais de Alana, sempre que uma nova palavra surge da boca dela. “É tão estranho porque, às vezes, a Alana chega em casa e conta até cinco, depois até dez. As pessoas acham que na ama não aprendem nada, mas aprendem. Aqui aprendem muito e tenho a certeza que isso os prepara para o futuro”, conta Leisa.

Um futuro que a ama Emília Alves diz ser “imposto pela sociedade, à partida” como menos capaz, por serem crianças que vivem na Cova da Moura.

Aos jornais, raramente chegam os bons exemplos – os que, vivendo ali, são cidadãos de sucesso. As páginas são normalmente reservadas “para a desgraça”. Uma das últimas vezes que isso aconteceu foi para noticiar a morte de um jovem do bairro Casal da Mira, mas com raízes na Cova da Moura, esfaqueado pelos colegas na estação de metro das Laranjeiras, em Lisboa.

“E de onde é que a arma vem? Quem as vende? Eles, jovens, estão mais tentados a este tipo de violência, porque a maioria deles não tem ocupação. Este aqui até era ocupado, estava a estudar, ajudava a avó – eu conhecia-o e ele chegou a morar cá. É a influência dos outros… Aquele desafio, eu não sei…”, lamenta Emília.

Educar bem é coisa para tirar o sono a Emília. “Penso muito nisso. Como fazer, o que faço de errado, porque é que estes miúdos não estão num bom caminho, será que errei, onde está o erro… Mas, depois, eu própria me esbarro contra a parede.”

Uma parede “muito grossa” à qual chama sistema. “A gente bate, bate, bate… mas não consegue furar. Há muitas barreiras. Na escola, um miúdo já esbarra com um sistema que não consegue furar. Eu não peço que sejam beneficiados, não. Mas que tenham um bocadinho de direito igual ao outro. Que tenham chance.”

Emília recorre ao exemplo das crianças com défice de atenção, muitas vezes colocadas “completamente à parte” do resto da turma porque não há tempo no currículo escolar para dedicar mais a quem está uns passos atrás. “Se pegas num miúdo desatento, com mais dificuldade em aprender, e o colocas na sala com outros que também têm dificuldade… Qual é a chance dele? Se juntas todas as crianças do bairro na mesma sala e as separas do resto, qual é a chance?”, remata.

Em 2000, o Moinho da Juventude decidiu ajudar a mudar a sina destas crianças. As creches nos arredores eram escassas e caras. Durante anos, esperaram erguer, junto à sede do Moinho e, mais abaixo, nuns contentores, creches e jardins de infância.

Entretanto, o Centro Paroquial formou uma creche, bem como a Associação de Solidariedade Social da Cova da Moura. Só depois, o Moinho da Juventude criou a Creche Árvore, com 60 crianças, dos zero aos três anos, e a Creche Familiar, com o programa das amas, no início com 20 (agora, com 12). Ao todo, são 48 crianças ao encargo de amas. Crianças que depois dos três anos integram o Jardim de Infância do Moinho, que dá resposta a 82.

Há ainda as crianças e jovens do CATL [Centro de Atividades de Tempos Livres], com várias modalidades, do primeiro ao segundo ciclo, com apoio escolar para todas as idades, e desporto (como judo, futsal e basquetebol). E há o apoio alimentar, distribuído por cerca de 200 agregados.

Flávio Almada está à frente da associação que foi criada nos anos 1980 por duas mulheres e um homem, quando a população ainda estava a edificar as suas casas e ruas naquele pedaço de terreno. Surgiu com a missão de responder a necessidades e defender a população da Cova da Moura, lembra o atual coordenador.

Passados tantos anos, o projeto das amas surge precisamente neste sentido. “Tem a questão da necessidade, sim. Eram muito necessárias às famílias. Mas tem a outra questão, a do paradigma, a forma como olhamos para a educação, que é tão importante nas nossas vidas”, diz.

O financiamento da associação é garantido, “numa grande parte”, pela Segurança Social. O resto advém de candidaturas a projetos e donativos – embora daqui o dinheiro seja mais esporádico e imprevisível.

IV - Quantas amas é preciso o bairro perder?

“O nome vem mesmo a calhar”: Creche Familiar, aponta a ama Luísa. Amas e crianças sentem-se como família. “Mais uma das razões pelas quais se deveria dar mais atenção ao nosso trabalho.”

Há anos que as amas do Moinho da Juventude aguardam passar de prestadoras de serviços, pagas a recibos verdes, para contratadas pela associação. Flávio Almada diz que tudo depende da extensão de um acordo com a Segurança Social que, em 2007, estabeleceu um protocolo especial que permitiu o reconhecimento das amas, até então clandestinas, mas não a sua contratualização. “É uma das nossas maiores lutas. Ainda sem resposta”, conta o coordenador do Moinho da Juventude.

A profissionalização deste setor tem vivido num vai e vem de forças. Em 2014, o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social falava da criação de “uma nova profissão”, a de ama. Apesar de existir, existia na clandestinidade, sem enquadramento legal. A partir de então, estas profissionais deixariam “de estar obrigatoriamente abrangidas pelo regime de Segurança Social dos Trabalhadores Independentes”, ainda que sob a obrigatoriedade da autorização da Segurança Social.

Mas a proposta trouxe desafios. A regularização da atividade dita que a contratualização da das amas tem de ser feita diretamente com as famílias, pelo que a Segurança Social deixa de ter o papel de entidade enquadradora. O que levantou protestos, logo na altura, por parte da Associação dos Profissionais no Regime de Amas, que reclamavam a perda de direito ao trabalho para as amas que trabalhavam diretamente com a Segurança Social.

É o caso das amas da Cova da Moura, que apesar de tudo conseguem trabalhar sob este protocolo especial mantido com a Segurança Social.

Aqui, recebem não só crianças do bairro (embora seja a vasta maioria), mas também de outros. “O princípio do Moinho é: seja quem for que vier aqui, é bem-vindo. Nós não queremos saber se é de Júpiter ou Marte, estamos aqui para servir. Temos crianças da Cova da Moura, temos da Damaia, Cacém, Queluz, Massamá, Benfica, Rio de Mouro”, contabiliza Flávio Almada.

Já foram 20 amas, mas são cada vez menos. Pela velhice, pelo cansaço, mas sobretudo pelas condições a que estão sujeitas como trabalhadoras a recibos verdes.

Emília está sempre a adiar a decisão de desistir. “Ou tenho que deixar os recibos verdes, deixar de ser ama, ou arranjar um escritório qualquer para ir limpar a seguir ao meu horário.”

Sabe apenas que não gostaria de falhar às crianças. Se não for agora, um dia terá de ser e esse é pensamento que a faz estremecer. “O envelhecimento às vezes apavora-me e penso ‘também, já chega’… Mas… Vem a segunda-feira e voltam as crianças e volta outra vez a ideia de que isto faz sentido”, sorri.

Lucinda já revela cansaço. “Já estou sem tempo para mim… Agora, não dá para fazer nenhum, de manhã. À tarde, às vezes, as crianças saem até às 17h00… e tal. Depois, se tenho faturas para pagar, tenho que correr rápido antes de fechar às 18h00. Se preciso de fazer uma compra, tenho que correr, porque amanhã não posso fazer nada.” E não raros dias os termina a falar em desistência.

Mas basta olhar para Alana, ali sentada no sofá à frente dela, para suspirar e voltar atrás na palavra. “Já disse que vou deixar, já disse. Mas estou a pensar…”, desata uma gargalhada.

“Eles me dão alegria. Eles dá genica, dá graça, partilha tudo o que eles têm connosco. Não há nada mais puro do que eles. E eu gosto de ser o que sou para eles.”

Ama, essa palavra de origem basca e que significa mãe.