Show Menu
True Story Award 2023

Por ti, Portugal, eu juro!

Durante a Guerra Colonial, um milhão e quatrocentos mil homens combateram em Moçambique, em Angola e na Guiné. Um terço destes militares eram africanos. Homens que arriscaram a vida por uma pátria que acreditavam ser a sua e que, após o 25 de Abril, foram deixados para trás. Os Comandos Africanos da Guiné foram dos que mais sofreram na pele o abandono de Portugal. São parte do outro lado da Revolução, parte de uma história até hoje silenciada.

Quando a festa que celebrou o “Golpe de Spínola” teve um fim, Juldé Jaquité sentia-se perdido. Nos meses que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, os pensamentos atormentavam-no, só mesmo os cigarros — um atrás do outro — pareciam ser capazes de lhes pôr um travão. Não esquecia, não tinha como esquecer, a noite em que, à socapa, o ex-marido da mulher lhe bateu à porta e o alertou: “Juldé, sai de Bissau e vai para o Senegal. Estou a dizer-te isto porque trataste bem dos meus filhos, não te posso trair. Sei que o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] vai matar todos os comandos, incluindo os graduados. Vão todos morrer.” Poucos meses depois, em Setembro, o homem possante de quem o Exército português fizera furriel da tropa comando, deixou a Guiné e partiu em fuga para o país vizinho. Saiu sem nenhuma certeza, nem mesmo das razões que o levavam a querer desaparecer.

A tropa, a guerra, roubaram-lhe a juventude, seria mesmo possível que, agora, este limbo a que chamavam “paz” tivesse chegado para lhe interditar a vida adulta? Juldé tinha 13 anos quando o PAIGC atacou o quartel de Tite, em Janeiro de 1963, no episódio que ficaria conhecido nos livros de História como o início da guerra na Guiné. O conflito a que de um lado se chamou “Guerra Colonial”, e do outro “Guerra de Libertação”, destruiu-lhe a família: depois do pai ter sido morto na sequência de um ataque do PAIGC a um quartel, Juldé viu-se obrigado a integrar as milícias portuguesas — grupos de base local que tinham como função a autodefesa da população — para proteger a aldeia onde vivia com a mãe e os irmãos.

Juldé é um dos um milhão e quatrocentos mil homens — um terço dos quais africanos — que Portugal recrutou para o Exército durante a Guerra Colonial (1961-1974), de acordo com o 1.º volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África. E fez parte do grupo de mais de 550 militares que, entre 1970 e 1974, integraram as três companhias de comandos africanos da Guiné, a única tropa de elite da história do Exército português composta, desde a base até ao topo, por homens negros. Para conseguir travar o avanço dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde, as Forças Armadas Portuguesas (FAP) precisavam de homens fortes, destemidos, capazes de suportar longos períodos de isolamento no mato. Homens em quem as chefias militares pudessem confiar de forma cega. Muito mais conhecedores do terreno do que a tropa metropolitana, no caso da Guiné, os comandos africanos foram a jogada de xeque com a qual o então governador da região, António de Spínola, acreditou ser possível ganhar a guerra.

“Quando o meu nome saiu para a tropa, quisesse ou não quisesse, tinha de ir, era a lei que dizia isso. Alguns pediam para ir para os comandos, mas não foi assim com todos. No fim da instrução, perguntavam quem é que queria ser comando, eu pelo menos, não levantei a mão. Queria ser civil, não queria dedicar a minha vida à guerra”, conta Fernando Cabral, soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné. Como malabaristas em cima de uma corda, os guineenses tentavam equilibrar-se no epicentro de um fogo cruzado, entre os estilhaços de um conflito que, muitas vezes, nem sequer compreendiam bem: “Conheci o [Amílcar] Cabral no tempo em que ele fazia o mapa da Guiné [recenseamento agrícola]. Morava aqui em Quebo, tinha uma mota de três rodas e nós corríamos atrás dele de bicicleta. O que aconteceu até ele ir para o mato, isso não sei, só ouvi que começou a guerra. Não sabia mesmo qual era o projecto do Cabral. Não sabia ler, naquele tempo era aluno de um marabu [religioso muçulmano], não ia à escola. Não sabíamos o que ia acontecer: aquilo que não viste, não sabes o que vai ser”, recorda Galé Jaló, soldado da 3.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné.

Considerado um território de menor importância, só a partir da década de 1960, com o envio de tropas para a guerra, é que os guineenses tiveram contacto maciço com portugueses brancos. Até então, a figura do Estado carrasco, que aplicava castigos corporais e obrigava ao pagamento do imposto, tinha como principal rosto os funcionários públicos cabo-verdianos, para ali enviados pelo regime para fazer cumprir os desígnios do império. Por isso, quando, em 1952, Amílcar Cabral — aquele que viria a ser o líder pela independência da Guiné e Cabo Verde — regressou a Bissau, desta vez como funcionário do Ministério do Ultramar, tinham-se passado 20 anos desde que pisara a terra que o viu nascer. Era um desconhecido para a maioria dos guineenses quando o PAIGC anunciou o início da guerra armada e fez da união de Cabo Verde e da Guiné condição de partida para a luta pela autodeterminação dos seus povos.

Num contexto em que o serviço militar era obrigatório para todos os homens a partir dos 18 anos, a maioria dos que integraram as FAP não fizeram uma escolha ideológica. Eram pessoas nascidas num território sob o domínio de Portugal, cidadãos obrigados a cumprir as leis do Estado. A família de João Séco Mané, furriel da 1.ª Companhia de Comandos da Guiné, é exemplo disso. João só soube que se chamava João no dia em que entrou para a escola, estava a mãe ainda grávida quando recebeu o aviso da administração colonial: “Logo que a criança nasça, o seu marido tem de vir cá fazer o registo.” Aconteceu a uma quarta-feira, dia 29 de Janeiro de 1948 em Nova Lamego (hoje cidade de Gabu), no Leste da Guiné. Cumprindo as ordens que lhe tinham sido dadas, Bolom Mané dirigiu-se ao registo civil para anunciar o nascimento do filho. Foi recebido por um funcionário público que, já habituado àquelas lides, começou a reclamar — “isto não é um nome que se entenda” —, e lhe arranjou logo uma alternativa. João foi o nome que lhe calhou em sorte; em casa nunca deixou de ser, apenas, Séco Mané.

Esta foi a primeira de muitas regras a que teria de se vergar para ser português: “Foi o meu pai quem me contou esta história. Disse-me que isto do registo começou praticamente no tempo em que eu nasci. Quase todas as pessoas da minha geração têm nomes portugueses. Metiam-nos na cabeça que tínhamos de mudar de nome, eles é que escolhiam, era tudo obrigação”. O pai de Séco Mané viria a ser preso em Setembro de 1965 pela PIDE — acusado de ser conivente com os "terroristas" e permitir que fossem buscar comida à horta da família; levaram-no para a ilha de Galinhas, uma prisão a céu aberto, onde o torturaram e espancaram. A mãe, com quatro filhos pela mão e um ainda no ventre, foi levada para o mato pelos guerrilheiros do PAIGC. Uns de um lado, outros de outro, todos reféns à força. No meio, obrigados a ir para a tropa, ficaram Séco Mané e o irmão Boquindi Mané que passou também a ter Joaquim como nome próprio.

“Deveria ter ido para a tropa em 1967, mas estava revoltado com muita coisa, não queria… A 26 de Agosto de 1970, chamaram-me para a inspeção militar: os médicos revistavam-nos tal como viemos ao mundo e mandavam-nos apanhar umas bolinhas onde se tirava o futuro número da tropa. Tirei o 590, o número que tenho até hoje”, detalha João Séco Mané. “O PAIGC estava no mato e nós juntámo-nos aos portugueses, fomos os filhos que foram obrigados a ir para a tropa. Nós, pretos, fazíamos três anos, os brancos faziam só dois e iam embora. Se nos dessem algum galão, ficávamos cinco anos”, acrescenta o irmão, Joaquim Boquindi Mané, também furriel da 1.ª companhia.


“Os portugueses sozinhos já não conseguiam, puseram pretos contra pretos para os brancos deixarem de se bater.”

Com 19 anos, Luís Sambu fintava a vida entre a lavoura e o futebol, queria ser jogador profissional. Mas, como “era rijo e estava forte”, foi um dos escolhidos para integrar a 1.ª Companhia dos Comandos Africanos da Guiné. “Era futebolista, extremo-esquerdo na equipa dos Balantas, jogámos contra o Benfica, o Sporting, a UDIB [União Desportiva Internacional de Bissau], o Canchungo... joguei quase até ir para a guerra. Com a vida militar, tive de deixar o futebol. Naquele tempo em que fui enganado, o meu trabalho era jogar à bola — correr os 100 metros, fazer preparação física. O Spínola chegou à Guiné antes de eu ir para a tropa, foi ele quem formou os comandos africanos. Os portugueses sozinhos já não conseguiam, puseram pretos contra pretos para os brancos deixarem de se bater.”

“A propaganda colonial foi concedendo uma visibilidade crescente aos combatentes africanos das FAP (...). A imprensa portuguesa, ao apresentar o combatente africano como um sujeito no qual as Forças Armadas e o Estado português depositavam a sua total confiança (...) renovou argumentos para reivindicar e legitimar a dominação em África”, escreve Luís Nuno Rodrigues no livro “Spínola”. A farda de comando era um escudo que protegia estas pessoas da pobreza, da dureza do trabalho do campo, da exclusão... Mesmo os que foram obrigados, não negam que rapidamente se habituaram aos privilégios de que passaram a ser detentores, quando comparados com a maioria da população negra. O salário fixo permitia pôr comida na mesa da família, começar a construir uma casa, adquirir bens que, de outra forma, não estariam ao alcance. Spínola agigantou-lhes a moral, fê-los acreditar que eram importantes, convenceu-os de que seriam os futuros líderes da Guiné, os que comandariam o país quando o PAIGC saísse derrotado.

Galé Jaló trabalhava na construção da Ponte do Saltinho, uma das grandes obras públicas da administração portuguesa na Guiné, quando um sargento o chamou e lhe disse: “Tens de dar o nome para os comandos ou para os fuzileiros, senão vais para a ilha de Caravela [ilha do arquipélago dos Bijagós, onde ficavam reclusos os que não acatavam as ordens do Estado]”. Decorria o ano de 1972 e vivia-se o último fôlego da guerra, Galé foi receber a farda a Bissau e seguiu para o quartel de Fá Mandinga, no Leste da Guiné. Aqui, os que já faziam parte das Forças Armadas juntaram-se a novos recrutas e começaram a ser treinados para integrar as três companhias africanas do Batalhão de Comandos da Guiné — todos escolhidos a dedo, a mando de Spínola.

Malam Samá, outro comando da 1.ª companhia, acredita até hoje ter sido por vontade de Deus que sobreviveu aos treinos. Quando chegou ao quartel de Fá Mandinga, os recrutas foram divididos por grupos, cada um com 25 homens. Treinavam dia e noite, entre flexões, abdominais, corrida, tiro com armas. O tempo que sobrava era pouco até para dormir. “Estivemos um ano naquela terra, só no curso de comandos. Os treinos eram fortes, havia gente que morria, mas na nossa companhia só tivemos um morto, no rio de Bafatá. Fomos fazer a instrução de mar, ele entrou no rio, não sabia nadar, engoliu água e afogou-se. Depois apareceu e fomos enterrá-lo. Alguns também levaram tiros e houve um a quem uma granada lhe rebentou nas mãos e as destruiu completamente”, recorda.

Em Fá Mandinga, debaixo de um sol escaldante, os futuros comandos eram obrigados a atravessar rios com crocodilos e a treinar com balas reais. Ali, fabricavam-se máquinas de guerra numa espécie de linha de montagem de seres humanos: os que não aguentavam a dureza dos treinos, qual autómato com defeito, eram postos à margem. Foram muitos os que perderam a vida durante a instrução, ou dali saíram feridos.

Depois da recruta, foram enviados para Bissau. Apresentavam-se duas vezes por dia no quartel de Brá e só entravam em acção nos dias de operações especiais. Eram a “arma secreta” que o Exército português activava nas missões mais difíceis. O objectivo era, por norma, alcançar as zonas recônditas da Guiné, onde se encontrava acampada a guerrilha do PAIGC. O destino, ao certo, era quase sempre desconhecido — manter segredo era a única maneira de garantir que não havia fugas de informação entre familiares e amigos em lados opostos da barricada. Vestiam o camuflado e eram largados de helicóptero, às vezes “a mais de cinco metros de altura, sem pára-quedas, sem nada”, Galé Jaló. Consigo, levavam uma pistola-metralhadora, granadas, faca de mato, cinturão com cartucheiras, cantil, saco-cama, impermeável e ração de combate. A missão era quase sempre a mesma: capturar elementos do PAIGC e destruir as bases do movimento. Os comandos eram os primeiros a enfrentar o perigo, tomavam a dianteira das acções e protegiam as tropas brancas, que vinham atrás. No final de cada operação, tentavam desaparecer sem deixar rasto.

“A tropa especial era muito melhor do que a normal, actuava em todas as partes”, explica Paulo Rodrigues, o único militar graduado dos comandos africanos da Guiné ainda vivo. Recorda esses tempos com um júbilo que contagia, fala de si e dos colegas como se fossem pavões: “Eu era jovem, simpático… Naquele tempo, as moças viam-me e gostavam. Quando usávamos a farda de comando e passeávamos por Bissau, toda a gente ficava a olhar para nós. Saltávamos dos carros em andamento e caíamos de pé”.

2. “A primeira vez que vi um morto na mata, fiquei quase uma semana traumatizado”

Das mais de 17 operações em que os comandos africanos participaram, a “Mar Verde” foi uma das mais marcantes. Com o intuito de travar o apoio da Guiné-Conacri ao PAIGC, em Novembro de 1970, Spínola planeou um golpe de Estado e ordenou aos militares portugueses que vestissem os uniformes do Exército desse país com um triplo propósito: tirar do poder o chefe de Estado Sékou Touré, capturar Amílcar Cabral e libertar os portugueses que aí tinham sido presos pelo PAIGC. Para concretizar estas tarefas, chamou os recrutas da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, que se começava a formar naquela altura, e levou-os para a ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Sobre o que lá se passou, todos repetem a mesma história: foram informados dos objectivos e do que cada um teria de fazer quando chegassem a Conacri. Uma “missão suicida” a que João Bacar Djaló, capitão da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, se opôs. Mamadu Camará, soldado desta companhia, conta que o capitão disse ao comando-chefe que não iria enviar os seus filhos para a morte. Mas não lhes deram opção: ou iam, ou todas as tropas seriam postas num barco armadilhado no meio do mar.

Todos os dias, quando o sol se punha, a mãe de Abdulai Djaló sentava-se a chorar. Foram noites e noites em que, mesmo quando os olhos se fechavam, a cabeça não conseguia desligar. Alfa, o filho mais velho, era comandante do PAIGC; Abdulai, o mais novo, comando africano do Exército português. Pensar que dois homens que lhe tinham saído das entranhas se poderiam matar um ao outro estava a enlouquecê-la. Quem conta esta história é Abdulai Djaló, soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos: “Sempre que voltava de uma operação perguntava-me ‘Não viste o teu irmão? O teu irmão está vivo?’, dizia-lhe que sim. Havia pessoas do PAIGC com quem contactávamos para saber dos nossos familiares. A primeira vez que vi um morto na mata, fiquei quase uma semana traumatizado. Deitava-me na cama e não conseguia dormir. Uma vez fui ferido em combate, levaram-me para o hospital militar e vi lá tropas sem pernas, sem braços, sem olhos. Puxei pela cabeça e pensei: ‘Djaló, isto não é vida, tu também podes vir a ficar assim.’”

3. “O pior veio depois do 25 de Abril”

Ao recordar a juventude passada na guerra, há nestes homens um misto de mágoa e nostalgia. Pode, em simultâneo, o melhor tempo das nossas vidas ser também o pior? “Tenho saudades, era jovem, tinha força, fazíamos muitas brincadeiras. Na tropa, não havia distinção entre brancos e pretos, éramos todos amigos, gostávamos muito uns dos outros. O pior veio depois do 25 de Abril”, recorda Abdulai. Nos dias que se seguiram à Revolução dos Cravos, houve festa rija na Guiné. Adivinhava-se o fim da guerra e do “trabalho” — nome com que se referem à tropa. Motivos para celebrar não faltavam.

Joaquim Boquindi Mané conta que ficou contente, “muito contente”, quando ouviu na rádio o que tinha acontecido: “Soubemos que o Spínola tinha dado um golpe de Estado a Marcelo Caetano e saímos todos à rua para celebrar.” Conversaram, abraçaram-se, gritaram para o mundo ouvir: “A guerra acabou! A guerra acabou!” Até cantaram o fado: “As tropas metropolitanas cantavam coisas bonitas, diziam ‘vou para a minha terra’, ‘Guiné, vou-me embora, vou ter saudades, mas vou ver a minha mãe e o meu pai…’”

Os corpos ainda transpiravam de alegria quando os comandantes do PAIGC, o partido a quem seria transferido ao poder, começaram a chegar a Bissau e a explicar aos africanos do Exército português que os brancos se iriam embora. Que, daí em diante, todos os filhos da Guiné se poderiam entender. Galé Jaló teve logo um mau presságio e decidiu regressar a Quebo, onde vivia antes de ser recrutado: “Deixei a farda e tudo o que me podia identificar no sítio onde morava em Bissau. A chave ficou na porta, vim-me embora logo como civil e comecei a trabalhar no campo. Se ficasse, sabia que ia ter problemas.”

Entre Maio e Agosto de 1974, enquanto as comitivas portuguesas e do PAIGC tentavam chegar a acordo para a retirada de Portugal do território, o “problema dos comandos” foi inúmeras vezes apontado como uma das principais questões a resolver. Durante este período, as três companhias continuaram armadas. Só depois de 19 de Agosto, aceitaram entregar o cinturão, as botas, a farda, o brasão e as armas. Em troca, o governador Carlos Fabião ofereceu-lhes quatro meses de salário adiantado, com a indicação de que deveriam apresentar-se no Quartel de Brá, em Bissau, no dia 1 de Janeiro de 1975, pelas oito horas da manhã.

Quando foi declarado o “cessar fogo” entre o Exército português e a guerrilha do PAIGC, as companhias de comandos africanos representavam uma “incógnita para todas as forças políticas interessadas no processo de descolonização da Guiné”, lê-se num documento que resume as actas escritas pelas Forças Armadas entre Agosto e Setembro de 1974. Para o Governo português, uma aliança destes homens com o PAIGC poderia precipitar a retirada do Exército, obrigando o país a aceitar condições desvantajosas impostas durante as negociações. Para o PAIGC, a hipótese de os comandos africanos se poderem aliar a forças políticas opostas representava uma ameaça que queriam, desde logo, travar.

Por essa altura, Juldé Jaquité — o furriel dos comandos que fugiu para o Senegal para não ser morto — ouvira falar de uma lista que reunia os nomes daqueles que queriam ir para Portugal. Dirigiu-se ao Gabinete do 2.º Comandante do Batalhão de Comandos decidido a deixar a única terra que até então conhecera — era esse o preço que estava disposto a pagar pela vida. Mas Glória Alves descansou-o: “Ainda estamos a juntar os nomes das pessoas que querem ir. Não te preocupes.”

A 30 de Agosto de 1974, foi assinado o Acordo de Argel que oficializou a transferência de poderes do Governo português para o PAIGC. O documento garantia a reintegração da “força africana” na nova vida civil da Guiné-Bissau e referia ser responsabilidade do Estado português o pagamento das pensões de sangue, invalidez e reforma de todos os que combateram no Exército. “[Os portugueses] disseram-nos que voltaríamos ao trabalho em Janeiro... O que nos fizeram foi uma traição. Não pode ter outro nome”, acusa Juldé. “Traição” é a palavra a que, uma e outra vez, os comandos africanos da Guiné recorrem para descrever o que se passou. Muitos guardam, até hoje, a prova do que relatam num papel amarelado carcomido pelo tempo.


“Escangalharam-me na prisão”

Quando passou à disponibilidade, Mário Sani, soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, começou a trabalhar como taxista em Bissau. Lembra-se de ter ficado feliz com o 25 de Abril e a saída dos portugueses: “Era a independência, estava livre!”. Mas, pouco tempo depois, os corpos antes extasiados da celebração foram, pouco a pouco, enrijecendo. Um clima de tensão tomou conta da euforia e os comandos africanos tornaram-se nas principais vítimas de um caldeirão político e social em ebulição. Portugal — o país pelo qual juraram bandeira — deixou-os para trás, abandonados à sua sorte; o PAIGC — o partido agora no poder — considerou-os traidores de raça e de classe, viu neles uma ameaça, e perseguiu-os; muitos até à morte.

Até 1976, Mário levou uma vida de casa-trabalho, trabalho-casa. Sabia que quanto mais despercebido passasse, maiores seriam as hipóteses de não ser preso. Um dia, receando que a sua vez estivesse para chegar, decidiu fugir para Bafatá, uma cidade no Leste da Guiné-Bissau — queria atravessar para o Senegal. “Apanharam-me a uma quarta-feira por volta das cinco e meia da tarde e trouxeram-me de volta. Perguntaram-me se tinha estado nos comandos, eu disse que sim. Pegaram-me na camisa, tiraram-me as calças, deixaram-me nu como um recém-nascido. Amarraram-me as mãos atrás e deitaram-me dentro do abrigo. Pisotearam-me, partiram-me todos os dentes na boca, deram-me pontapés, amarraram-me com uma corda como se fosse um animal morto pendurado. Escangalharam-me na prisão. Quando me desamarraram, estava paralisado — não podia estender os braços, não podia caminhar. Estive preso em Bissau seis meses, depois levaram-me para Caraxe”, detalha.

Caraxe é uma ilha do arquipélago das Bijagós que funcionou como uma prisão a céu aberto. Mário esteve lá até 1979, quando um médico cubano o ajudou a escapar. Depois disso, nunca mais parou de fugir: Senegal, Guiné-Conacri, Costa do Marfim, diz ter percorrido, sempre em fuga, toda a África Ocidental. É um corpo mirrado, sentado no alpendre da casa onde nasceu, na cidade de Mansoa, que conta esta história. Uma miragem do homem forte e de olhar viçoso que fisga quem passa a partir da fotografia pendurada na parede da sala. Mário só voltou à Guiné-Bissau a 6 de Abril de 2006, o seu único filho contava já 31 anos e a mulher com quem casara há mais de três décadas tinha outra família. Desde então, vive sozinho numa casa recheada com duas cadeiras, um colchão, e a fotografia de uma juventude cristalizada que, quando a recorda, lhe embarga a voz: “Como é possível que eu já tenha sido assim?” Hoje, já só guarda uma esperança na vida: “voltar” a Portugal para ser reconhecido como militar do Exército e fazer os tratamentos médicos de que precisa. Usa o verbo “voltar” porque foi esse o país onde nasceu, ainda que nunca tenha posto os pés na Europa.

A saída de Portugal dos territórios que explorava em África decorreu ao longo de pouco mais de um ano, num processo a que na Europa se dá o nome de “descolonização”, e em África de “libertação”. A Guiné-Bissau foi o primeiro país a ser reconhecido como independente por Portugal, a 24 de Setembro de 1974. Em Moçambique isso só viria a acontecer a 25 de Junho de 1975, e em Angola a 11 de Novembro do mesmo ano. Que se saiba ao certo, até 1979, pelo menos 54 comandos africanos foram assassinados nas matas de Cumeré, Portogole, Mansoa e Bambadinca, mas os relatos que ainda se ouvem por toda a Guiné-Bissau apontam para muitos mais.

Até hoje, nenhum representante do Estado justificou cabalmente o não pagamento das pensões de sangue, invalidez e reforma a que Portugal se comprometeu, em 1974, com a assinatura do Acordo de Argel. Em 1983, sem que os militares guineenses tivessem uma palavra a dizer, ficou definido, na Resolução do Conselho de Ministros n.º18/1983, que o pagamento dessas pensões seria transferido para o Estado da Guiné-Bissau; em troca, Portugal perdoou uma dívida de juros vencida no valor de 200 milhões de escudos [998 mil euros]. “O Conselho de Ministros, reunido em 6 de Janeiro de 1983, resolveu (...) autorizar que o crédito da Guiné-Bissau sobre o Estado Português — resultante do pagamento de pensões de preço de sangue e invalidez, de sobrevivência e aposentação devidas pelo Estado Português, respectivamente, a cidadãos guineenses que serviram nas Forças Armadas Portuguesas e a funcionários públicos portugueses residentes na Guiné-Bissau — seja utilizado para pagar, mediante compensação, os seguintes encargos da República da Guiné-Bissau em Portugal”, pode ler-se no documento.

Ou seja, Portugal transferiu a responsabilidade do pagamento de pensões dos efectivos das Forças Armadas recrutados na Guiné para a mesma força política contra a qual esses mesmos militares lutaram durante a guerra — o PAIGC, partido que continuava, nessa altura, no poder. Uma dívida que nunca foi saldada e pela qual os militares vivos, os seus filhos e as suas mulheres se batem ainda hoje, fazendo manifestações frequentes em frente à embaixada de Portugal em Bissau.

Subitamente, o ruído da festa que celebrou o fim da guerra foi ocupado por um eco silencioso de medo e abandono que desafia a narrativa até hoje contada sobre o 25 de Abril — uma revolução pacífica, feita com cravos, onde não houve sangue. Depois de contactados pela DIVERGENTE, a primeira vez há mais de um ano, os ministérios da Defesa, Negócios Estrangeiros e Finanças escolhem continuar a não se pronunciar, deixando sem resposta os milhares de africanos do Exército português que foram abandonados à sorte com o fim da Guerra Colonial. “Os portugueses têm o nome de toda a gente que foi à tropa, deveriam chamar os que estão vivos. Agradecemos que haja bom senso, que Portugal reconheça os africanos que deram a vida para defender os interesses da pátria. Pessoas que foram presas e mutiladas. Pessoas que estão velhas, cansadas e sem nada.” As palavras saem da boca de Lamarama Djaló, furriel da 2.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné, mas o brado de revolta é uníssono. Só mesmo a morte que, pé ante pé, se vai apoderando da velhice destes homens parece ser capaz de o calar.