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True Story Award 2024

Filhos únicos da terra

Num interior abandonado, há três aldeias portuguesas em que só vive uma criança. Em Santana, Macedo do Mato e Vinhas os dias agigantam e as geografias deixam isolados os últimos redutos da juventude

A rua por onde se entra em Santana é a rua por onde se sai de Santana. Naquela rua, o mundo todo. Naquele mundo, apenas uma rua desemboca noutros mundos. Na aldeia sem saída, curvada para um vale onde se perfila o rio Tejo, um sopro tórrido circunda os caminhos e raciona as raras vivalmas pelas casas brancas. À hora de almoço ouve-se o assobio da carrinha dos gelados. No mais sobressai o silêncio, só rasgado pelo chilrear dos pássaros. Salta à vista um mapa etiquetado a verde na pitoresca junta de freguesia, rente à única caixa de multibanco. Revela as coordenadas para os trilhos pedestres. Por ali sobrevive uma reserva natural que ainda vai levando pessoas de visita à terra. Mas naquele Alentejo, a ruralidade escorre pelos passeios como sangue nas veias. Onde sobressai a beleza da paisagem, falta gente. Naquele mundo feito de ausências, agigantam-se os dias. Sobra sempre tempo. No parque infantil impera a quietude. Onde havia uma escola primária ergueu-se um museu.

De pés descalços e fita métrica tombada no sofá, Isaura orgulha-se de manter em casa o último reduto da juventude da aldeia. A neta Maria Inês, há 12 anos sob a sua guarda, é a única criança que ainda ali habita, a respirar os ares de uma vivência em solidão. Santana é uma das únicas três freguesias portuguesas onde só mora uma criança. O retrato é triste e alheio à terra presente na memória de Isaura. No seu tempo, “era alegre”, fervilhada de ferroviários e de pescadores. “Havia muita gente”, evoca. Sem que a televisão tivesse ainda lá domicílio, os jovens juntavam-se na taberna da tia a jogar à malha aos domingos. Nas noites de sábado, volta e meia soava a concertina do baile. “Só aqui na zona onde moro, moravam duas raparigas e dois rapazes. Na rua ao lado, mais duas. Éramos umas 20 ou 30 moças todas da mesma idade”, suspira. E nesse suspiro adivinha-se o peso de um silêncio só interrompido pela neta. “Agora sou uma mascote no meio deles”, irrompe Maria Inês, numa jovialidade que os avós lhe reconhecem desde os quinze dias de vida, quando passou a integrar aquele agregado familiar. À miúda, as memórias dos conterrâneos não lhe trazem outro cenário que não este. O mais velho, senhor João, carrega 96 anos e habita o lar, a única estrutura a assegurar algum trabalho à aldeia. Ao contrário de Maria Inês, o senhor João não está só. Olha à volta, e se a memória lhe for generosa, consegue recuperar uma mocidade distante nos rostos dos outros idosos que habitam a aldeia. Dos 277 habitantes de Santana, mais de duas centenas têm 65 ou mais anos e só sete estão entre os 15 e os 24. Dizem os Censos de 2021 que Maria Inês é a única abaixo dos quinze. E “sente-se orgulhosa por isso”, assegura o avô José Lopes. Antigo condutor dos autocarros da Rodoviária do Alentejo, transportava dezenas de crianças para a escola, em Nisa. Hoje vem uma carrinha de propósito ao número 4 da Rua da Independência buscar-lhe e trazer-lhe a neta. “É desolador ela não poder pedir-me para ir brincar com outra criança”, diz, numa voz encolhida.

O olhar de Maria Inês quando ouve falar José e Isaura é de ternura e gratidão. Parece projetar neles o que é e o que espera vir a ser – “médica, para poder cuidar dos avós”. No quarto cor de rosa, onde assomam na porta do roupeiro os desenhos dos tempos livres, a menina confessa-se “tímida, despachada e arrumada”. E talvez em todas as características que escolheu nomear haja um pedaço de causalidade com o facto de ser filha única da terra. Por nunca ter tido com quem brincar, cedo se habituou a usar os peluches para os diálogos, mesmo sentindo “tristeza por fingir que fala com alguém”. Aprendeu a usar o tempo a seu favor. Para além de arrumar o quarto, de desenhar e de andar de bicicleta, sabe que os amigos encontram estranheza no facto de gostar de estudar. “Os da minha turma perguntam porque é que eu ando sempre a fazer os trabalhos de casa. Eu digo que não tenho nada para fazer”, denota.

Tornou-se adulta mais cedo, um traço habitual das crianças que interagem quase exclusivamente com adultos, tendo-os como modelos e retirando deles o seu reportório de comportamentos. Paula Cristina Martins considera que, “de alguma forma, a infância como a conhecemos não existe nestes casos. Por isso, estas crianças até costumam ser mais apreciadas pelos adultos, por se comportarem como eles”. Professora da Universidade do Minho e investigadora no Instituto de Estudos da Criança, é com base numa linha de investigação criada nos Estados Unidos com o nome de ‘The power of place’ – o poder dos lugares – que alerta para um ponto de partida. “O nosso percurso de vida tem endereço e, por vezes, depende da rua em que vivemos”. No caminho, são identificadas os códigos postais da desvantagem e da exclusão. Contudo, a psicóloga evita criar para o caso uma noção de inevitabilidade, porque “não há uma infância, há muitas infâncias.” No ser humano reside uma intensa capacidade de se adaptar e de fazer dos contextos fortemente adversos matéria prima para maximizar as oportunidades.

É a própria avó Isaura a reconhecer que, “no meio de tudo, se a Maria Inês tivesse alguém da idade dela para brincar, talvez fosse um bocadinho mais rebelde”. Como vem da escola e fica num “ambiente calmo”, é assim que vai passando o tempo. “Lê muito e já me tem escrito cartas”, nota orgulhosa. “E tu todos os dias, de manhã, me dás conselhos”, responde-lhe a neta. Isaura emudece. Sai-lhe só um “pronto”, de olhos enlameados. “Juízo, não andes agarrada a ninguém. Não aceites nada de ninguém. Toma atenção às aulas”, exemplifica Maria Inês, como se de uma lição se tratasse. “E já não é pouco…”, finda Isaura.

No longo intervalo de tempo entre a hora de chegar a casa, às cinco e meia da tarde, e a hora de tornar a ir para a escola, pelas oito da manhã, quase sempre “a salvação” de Maria Inês são os livros. Chega a ler três por semana. Deles absorve como escolher com minúcia as palavras e como arrumá-las nas prateleiras do pensamento. “Contaram-me sempre a história de que no litoral há muito mais oportunidades de trabalho do que no interior. Realmente é verdade”, lamenta. Por isso, sabe ser inevitável sair dali no final do 12º ano, quando ingressar na universidade. E embora este lhe pareça um destino ainda longínquo, para a avó Isaura começa a estar latente a ideia da fuga do berço, junta com a esperança de que “ela nunca abandone os avós”.

Fronteiras do interior

Ao descrever a terra onde ganhou a junta por maioria sem nunca ter tido filiação partidária, Joaquim Carita expressa mais facilmente elogios do que preocupações. No jipe a condução é lenta para se apreciar a paisagem. “Ali é o Conhal do Arneiro, onde antes eram as minas de ouro e de onde se veem as Portas de Ródão”, aponta. Mas enquanto a inércia toma a paisagem, “as pessoas saem da freguesia para procurarem trabalho nas duas cidades mais próximas, Castelo Branco e Portalegre, enquanto os restantes vão falencendo”. Tanto, que em dez anos Santana perdeu quase um terço dos 404 habitantes que tinha em 2011 – e 11 crianças. A presidente da Assembleia da junta de freguesia, de 33 anos, é a quinta recenseada mais nova. Num encolher de ombros acompanha o presidente na ideia de que o envelhecimento da população, carregado de uma certa ideia de inevitabilidade, já deixou de ser alvo de conversa. Não é assinalável, sequer. “É o que é”, afirma a jovem Ana Guedelha. Mas o que será de Santana daqui por 20 anos? “Ui, se isto continuar assim, a freguesia vai acabar”, responde Joaquim Carita, acompanhado de um abanar de cabeça afirmativo de Ana. “Vai ficar um deserto”, diz ela.

A sensação de Joaquim Carita e Ana Guedelha é a certeza de Paulo Machado, presidente da Associação Portuguesa de Demografia. “Daqui a uns anos, estas aldeias ficam sem gente”, prevê. Morrem os velhos sem que os novos estejam em número suficiente para assegurar a renovação geracional. É assim no país que nos últimos dez anos perdeu 2% da população, pela primeira vez desde 1970, mas que emagreceu em 15,3% quando se trata da faixa etária dos zero aos 14 anos. Com isso, deu azo a fenómenos alarmantes. A freguesia de Mosteiro, em Lajes das Flores, nos Açores, com apenas 19 habitantes, perdeu mais de metade das pessoas e ficou sem nenhuma criança. Tinha seis em 2011. Já Quintanilha, freguesia do concelho de Bragança, era há dez anos a pior servida nesta faixa etária, com apenas duas crianças. Entretanto, ganhou outras oito.

É na década de 60 que se inicia uma trajetória de envelhecimento ininterrupta até aos dias de hoje. Sem menosprezar as consequências específicas das condições económicas de uma sociedade em geral empobrecida, uma parte importante do fenómeno deve-se a uma significativa redução da fecundidade, ancorada numa diferente concepção global do que é a família, também consequência natural e inevitável do acesso a novas práticas anticonceptivas, muito reforçadas na década seguinte, com o aparecimento da pílula. “Isso revolucionou por completo o comportamento procriador em Portugal”, assegura Paulo Machado. O sociólogo e demógrafo situa nos anos de 1980 “o primeiro grande sinal dessa mudança”. O índice de fecundidade situa-se abaixo dos 2,1 filhos, limiar para garantir renovação geracional. Mas se resulta daqui uma porção das causas do envelhecimento, o “efeito combinado” também se deve à emigração. Consequência da força colonizadora do Estado Novo, sobretudo no final dos anos 40, muitos portugueses viram-se motivados a colonizar as ex-colónias para Portugal amenizar o crescente movimento pró-independência que ali se formava. Foi um prólogo para o que viria a suceder mais tarde. Por razões económicas, o país começou a ver milhares de cidadãos, especialmente jovens, fazerem-se emigrantes. Saíram mais das zonas rurais, e “como não somos um país com muitas pessoas, se nos concentrarmos nas áreas urbanas, falta gente noutros sítios, como tem faltado numa extensíssima área de Portugal que já não é só o interior”, acautela o especialista. Com perto de metade da população concentrada em apenas 31 dos 308 municípios, em especial nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, segundo os últimos Censos praticamente todo o interior perdeu população de forma acentuada.
Num país tão estreito, perguntar-se-à o que é o interior. Depende de que definição lhe quisermos dar. Geograficamente falando, é a metade que não se cola ao mar, a que tece laços mais estreitos com a raia e com o país vizinho. “Mas o nosso interior é muito mais do que isso”, reflete Paulo Machado. Já há interior a invadir o litoral. Formula-se, portanto, um conceito novo para descrever o “apagão demográfico” das aldeias abandonadas.

O Portugal das notícias

Para Ramiro Arrátel, a definição não podia ser mais simples. “O interior é tudo o que existe do Marão para cá”. A sua aldeia de Macedo do Mato, em Bragança, é um lugarejo típico transmontano onde os muros e as paredes de pedra esculpem o horizonte. Para lá das fileiras de casas desarrumadas, permanece o silêncio da montanha, só interrompido pelo autocarro amarelo que ali passa para Bragança duas vezes por semana. É a partir daquela geografia que Ramiro ajuíza o mundo. E ali, na segunda aldeia de filho único, “é muito difícil ser-se presidente da junta”, lamenta. Das 208 pessoas que habitavam a terra em 2011, restam 178. Mais de uma centena tem 65 ou mais anos. Só sete habitantes se encontram entre os 15 e os 24 anos. Abaixo desse escalão vive apenas uma menina cuja família preferiu não ser interpelada. “À medida que vão falecendo as pessoas, vão fechando as casas”, tem repetido Ramiro quando precisa de responder a quem lhe pede um retrato do cenário que invade a freguesia. Falta a farmácia, os correios, o centro de saúde. Ainda vai funcionando um café, no centro, com três ou quatro vultos de cada vez.

Elísio Morais guarda em casa a antiga escola primária da aldeia. As carteiras antigas, a caneta permanente, os livros do tempo da mocidade portuguesa, combinados com a bandeira, o quadro a giz e os mapas do Portugal Ultramarino. Era jovem quando a mãe alugava a sala de estar para as aulas por 12 escudos ao ano, “menos do que custava a carreira para ir a Bragança levantar o dinheiro”, assevera. Dona Antoninha, que ali lecionou mais de 30 anos, dava as aulas da primeira à quarta classe. “E no final do dia, vestia uma touca, pegava numa vassoura e varria a sala”, relembra, nostálgico. É por devoção que Elísio continua a manter imaculada a escola, com a mesma porta e a mesma chave, o rádio antigo e uma caixa de música, junto à coleção de licores a que a mulher se gosta de dedicar nas horas vagas para depois oferecer às visitas.

Pela Rua do Cemitério, quando se vai de Macedo do Mato até Sanceriz e Frieira, as duas aldeias mais próximas, repete-se o cenário de um alongado vazio. Um fatídico sinal de que a juventude já não mora ali é proporcionado pelo facto de os jovens agricultores com terrenos preferirem viver em Bragança, onde, nas palavras do presidente Ramiro, “têm acesso a tudo, desde cuidados de saúde a divertimentos”. Aos idosos que ficam, dá-se a possibilidade de um táxi gratuito que os leve a Izeda, a freguesia mais próxima com serviços e um “centro de saúde a funcionar às prestações” – não muito mais. Assim vai sobrevivendo a aldeia a que Ramiro Arrátel diagnostica morte anunciada. “Estou convencido de que não vem mais ninguém”, confessa com revolta. “Não há incentivos. O exemplo da seca que se vive este ano é sintomático. Se eu for à câmara pedir ajuda, mesmo para coisas simples, eles pouco ligam. O meio rural não rende votos”, acusa com dureza, como se precisasse de transcrever em palavras um Portugal ausente das notícias. “Se não houver alguém que esteja ali constantemente a lembrar que existimos, que também somos pessoas e contribuímos para a riqueza do concelho, facilmente somos esquecidos. Os políticos de Lisboa querem lá saber... É tudo muito bonito quando vêm aqui. Come-se e bebe-se bem. Mas depois saem e nunca mais se lembram de nós”.

Aqui reside outro problema. É que, à medida que vão perdendo pessoas, também a representação eleitoral enfraquece nas regiões abandonadas. Consequentemente, perdem poder para fazerem face às falhas, que se acumulam e agudizam, minguando a população que ainda resta. O demógrafo Paulo Machado gesticula afirmativamente, vendo a própria experiência retratada nas palavras de Ramiro. Apesar de fazer vida em Lisboa, é numa aldeia chegada a Ferreira do Zêzere que está recenseado e que vota. “Não chegamos a 250 eleitores e o que eu sinto é que o ato democrático da eleição é uma das últimas formas de soberania política. Posto o voto e chegado cá fora, depois não há o centro de saúde, não há o médico, não há a escola, não há o transporte…”, retrata. Por isso, para o presidente da Associação Portuguesa de Demografia, o despovoamento do interior é, em si mesmo, um problema de soberania. “Se nós não ocuparmos o território, deixamos de ter soberania sobre ele. Podemos tê-la formalmente, mas com muitas implicações sob variadíssimos pontos de vista”, diz. Desde logo, porque ninguém votou para que os territórios ficassem desabitados, até porque isso torná-los-ia “ingeríveis do ponto de vista ambiental”. Noutro prisma, um território nunca despovoa completamente. Por absurdo, se o país estivesse disponível para abdicar de uma parte, talvez fosse um equívoco, visto que “apesar de tudo, são riquezas existentes”, assume o investigador para quem um exemplo grosseiro da falta da assimetria e desigualdade entre regiões, que promove cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, é o acesso à internet. “Eu digo a um médico que vai ganhar mais para o interior, mas ele não pode usar internet? Isto tem de ter um custo para o país, avultado, mas compensatório”, argumenta Paulo Machado. Na ótica do especialista estamos perante uma tarefa gigantesca que obriga a reconsiderar uma data de medidas. Uma delas, já levada a cabo por Espanha, é uma avaliação de impacto demográfico como filtro para todas as medidas políticas, como já temos para o impacto económico e para o ambiental. “É necessário um esforço de convergência para alavancar aquela que hoje começa a ser, criticamente, o que em demografia chamamos sustentabilidade demográfica”, defende.

Cinco notas de esperança

A rede escasseia em muitos pontos da comprida freguesia de Vinhas. A apenas cinco minutos de distância de Macedo do Mato, a aldeia de Ramiro, é também entre os altos e cumes da serra transmontana que surge o povoado onde as avenidas são carreiros. É a última das terras de filho único. Pertence ao “umbigo do mundo”, Macedo de Cavaleiros. Bragança continua a ser a cidade mais atrativa para quem deixa a aldeia. Muitos o têm feito ao longo do tempo. Na terra das amendoeiras e oliveiras, o vento parece ter encontrado pouso para descansar. É manhã cedo e nem na praça Senhor dos Aflitos se vê algum dos escassos habitantes. Costuma ser ali, junto ao café Paris, que os poucos que restam trocam impressões nas horas mortas.

Nunca ninguém por ali vê Ricardo, o único jovem da terra. Aos 13 anos, é entre as paredes do pequeno quarto que constrói a fortaleza sob a timidez. O cabelo e os olhos a baterem no mesmo tom de castanho e umas espinhas a avermelharem a palidez da pele, escolhe com freio as palavras. Tomou o hábito de se escudar na sorridente irmã Francisca, mais velha, mais expedita, nascida com o mesmo peso e com a mesma altura, mas sete anos antes. “Na aldeia toda a gente o conhece”, diz ela. “É o único jovem de Vinhas”. Francisca já saiu da aldeia, quando foi altura de ingressar no curso de enfermagem, no Politécnico de Bragança. Por lhe saber os passos, Ricardo traça para si caminho idêntico. Sabe que estará na escola de Macedo de Cavaleiros até completar o 12º ano. “Depois talvez vá para Bragança”, pondera, para ser “professor ou enfermeiro veterinário”. Os mesmos passos da irmã, “nos mesmos lugares” seriam, para si, um “futuro bom”. E ela sorri. Foi também pelo irmão mais novo que decidiu ficar em Bragança. “Há quatro anos ele ainda era mais pequenino, precisava de ajuda no estudo, e sozinho aqui ele não poderia estudar com mais ninguém. Eu sempre lhe dava um apoio”, recorda Francisca.

Toda a vida dos irmãos se perfilou nos caminhos de Vinhas, no auxílio aos pais, na agricultura e a cuidar das cem cabeças de gado. A mãe, Maria José, recorda outros pais de outras crianças nascidas na aldeia. “Mas estão em França, ninguém quis ser agricultor”, lamenta. Por isso, quando há escola, vem um condutor de um autocarro buscar o rapaz religiosamente às 7h30 para correr muitas aldeias e estar na escola daí a uma hora, em Macedo de Cavaleiros, onde quase todos os colegas são da cidade. “Por vezes chega quinze minutos atrasado”, repara Ricardo. Tenha ou não o tempo preenchido com aulas, da parte da tarde, também religiosamente o mesmo autocarro só o leva de volta a casa pelas 19h30. Tem de voltar a casa quando a vontade é ficar e fica um pouco mais na escola quando quer voltar a casa cedo. É nas férias, com o tempo a perder fôlego, que Ricardo sente mais “o problema” de não haver quem partilhe da sua idade. Divide-se entre as teclas do computador, onde cria jogos, e as de um piano que o pai comprou aos filhos por tecer neles o sonho de ter algum músico na família.

Por vezes uma folha branca de papel é o suficiente para lhe ocupar as horas. Não poucas vezes lhe vêm à cabeça “paisagens grandes, com muitas montanhas e campos de milho” que gosta de desenhar. As ovelhas a que tira o leite, para ajudar os pais, e o gato Simba também têm o hábito de lhe atiçar o lápis. Faz quase tudo sempre sozinho. “Costumo mandar mensagens a amigos, falar por videochamada, mas muitas vezes não me respondem porque estão ocupados. Isso dificulta um pouco. Não posso jogar à bola, não tenho colegas com quem falar. Raramente aparecem aqui pessoas”, conta.

Estas não são realidades alheias às que Paula Cristina Martins estuda todos os dias, mesmo quando o foco são crianças residentes na urbe, “fechadas em apartamentos, que vão e vêm com os pais num carro para a escola”, exemplifica a investigadora do Instituto de Estudos da Criança. Os filhos únicos da terra estão isolados por fronteiras visíveis do território. O espaço urbano, por sua vez, está repleto de fronteiras invisíveis. “À partida pareceria que estariam num ambiente mais adequado mas não devemos olhar só para o contexto, temos de observar as interações. Por vezes há recursos de todo o tipo e, ao mesmo tempo, crianças sem conseguirem usufruir deles. É como ter um piano em casa e não saber tocar. Uma pandeireta pode tornar-se mais útil”, reflete.

Ricardo até já pensou sobre o que será de Vinhas sem ter mais ninguém para o continuar. É também essa a preocupação central de Andreia, uma jovem cujo cargo de presidente da junta parece não condizer com o semblante da aldeia. Saiu cedo de Vinhas para estudar e ainda hoje faz de Bragança casa para si e para o filho pequeno. Só que aos 33 anos, decidiu atar de vez o cordão umbilical que a liga à terra e ser dela uma espécie de curandeira. Filha de emigrantes, “antes de ser presidente da junta não estava muito presente”, confessa. O desafio irrompeu com uma dificuldade que não imaginara. Há coisas que precisa de fazer e sente a urgência de se apressar. “O posto clínico fechou. Tínhamos um médico que vinha cá e deixou de vir”, começa por enumerar. “Só há centro de saúde em Macedo de Cavaleiros, as pessoas têm de ir de táxi e pagar. Essa é uma das dificuldades que já expus à câmara”. E mais. Fachada sim, fachada não, as paredes escondem apenas resíduos de lar que deixaram de ter gente dentro. “As pessoas lamentam estarem abandonadas e algumas falam de solidão”. Por isso accionou na aldeia apoio psicológico, sem desconfiar por quanto tempo haverá esperança de quem ainda abra as janelas da terra ao mundo. “Antes isto tinha aquela calçada antiga, de pedras escorregadias que cediam, estavam sempre sujas, e no entanto havia sempre gente a subir e a descer, havia poeira no ar. Agora temos os paralelos e não temos quem passe por eles. As aldeias estão a ficar bonitas mas sem gente”, matuta. É um efeito dilacerador do peito, como se as geografias das pessoas não pudessem mais coincidir com a dos espaços.