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True Story Award 2024

Portugueses ciganos: como se forjou uma cultura de resistência

Cinco séculos de história dos portugueses ciganos em cinco andamentos. E algumas diligências para a tirar do esquecimento e a fazer chegar às escolas.

I. A chegada ao Reino de Portugal e dos Algarves

Imagine-se D. João III, em Évora (1521), a assistir à estreia da Farsa das Ciganas, pequena peça de Gil Vicente: quatro mulheres tentam ler a sina à plateia e quatro homens vender-lhes cavalos e burros.

“Andemos irmãs e vamos a estas senhoras de grande formosura, veremos a sorte, a buena ventura e elas nos darão as suas recompensas para que comamos”, diz Lucrécia, uma das quatro mulheres. “Bela senhora, nos dê algo precioso para que eu diga a vossa sorte só um pouquinho custa.”

Teriam entrado em Portugal na segunda metade do século XV, “pela fronteira da Estremadura espanhola”, ao que apurou o linguista e etnógrafo Adolfo Coelho (1847-1919). E achado “a província do Alentejo excelentemente adaptada ao seu modo de vida”.

Não se conhecem documentos sobre os primeiros a chegar. Não há notícia de que se tenham apresentado como peregrinos. Diz o historiador Francisco Mangas que Portugal ficava fora dessas rotas e não tinha prática de passar salvo-condutos semelhantes aos que nos restantes reinos ibéricos identificaram os primeiros ciganos.

A primeira referência é o poema As Martas de D. Jerónimo (1510), de Luís da Silveira, que integra o Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende — atribui um “engano” a “uma cigana ou muito fina feiticeira”. A segunda é a peça na qual Gil Vicente retrata as ciganas como impostoras e os ciganos como negociantes duvidosos.

Tudo no seu modo de vida chocava com a sociedade portuguesa de então, profundamente católica, hierarquizada, que atribuía a cada categoria social um modo próprio de vestir e forçava ao trabalho agrícola vadios e mendigos. A itinerância, o colorido dos trajes, os adornos, a prática de quiromancia, a língua —​ caló, variante do romani.

(Esquecidos pela história

Pequenino, Bruno Gonçalves (n. 1976) nada sabia sobre a história dos portugueses ciganos. “Não se falava nisso na escola.” Só se lembra de uma leitura sobre uma menina de tranças pretas junto a uma fogueira. “Dava ideia de que todos os ciganos eram nómadas.”

Em casa, no Bairro do Ingote, em Coimbra, também não havia quem lhe contasse de onde tinham vindo os ciganos, há quanto tempo tinham chegado, que história era a sua. Os pais não sabiam. E os avós, se alguma vez souberam, já não lha podiam contar, já tinham partido.

No 8.º ano, deixou a escola. “Era o único cigano da turma.” A escola não lhe parecia lugar para rapazes iguais a si. Esses já estavam a trabalhar. Bruno ia fazer o mesmo. Já ajudava os pais a vender roupa no Mercado D. Pedro V. “Ia ser um cigano como os outros. Ia viver da venda ambulante. Mais um ano ou dois, ia formar uma família. Não acreditava que no outro lado havia espaço para mim.”

Mas o país começou a investir mais na educação, na formação profissional, no combate à pobreza. Perante o desafio de cursar Electricidade, Bruno e outros rapazes ciganos tornaram à escola. Com uma componente técnica e outra geral, fazia o 3.º ciclo do ensino básico por unidades capitalizáveis.

Não se tornou electricista, mas percebeu que outro mundo era possível. Co-fundou a Associação Cigana de Coimbra (1999), de que foi primeiro presidente. E desenvolveu o primeiro projecto de mediação na Escola Básica de Ingote.

Ia buscar crianças a casa. Explicava-lhes as regras da escola. Envolvia as famílias. Elucidava os professores sobre costumes ciganos. Nessa missão, pôs-se “à procura de textos mais positivos”. Leu o que lhe veio às mãos. Começou a escrever A História do Ciganinho Chico, um conto infantil protagonizado por um rapaz de 9 anos que, questionado pela professora sobre a origem do seu povo, recorre ao avô.

O livro foi editado em 2011 com apoio da EAPN-Portugal e da Fundação Calouste Gulbenkian. E reeditado em 2021, com ilustrações da artista multidisciplinar cigana Natália Serrana (n. 1995), num projecto da Ribalta Ambição – Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas, financiado pelo Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas.

Pelo caminho que foi desbravando, Bruno tornou-se referência. Hoje, licenciado em Animação Socioeducativa, ajuda jovens ciganos “a concretizar os seus sonhos”. É vice-presidente da Letras Nómadas, parceira do Estado no programa de participação comunitária Romed e no programa de promoção da educação OPRE. E não se cansa de ensinar história e cultura ciganas.

O seu novo livro chama-se Conhece-me antes de Me Odiares – Notas sobre História e Cultura Cigana (2023) e também é editado pela Ribalta Ambição, dirigida pela cunhada, Tânia Oliveira, e pela mulher, Marisa Oliveira. “É um título provocador.” É um modo de chamar mais pessoas, desta vez crescidas, para esta história. “É uma história com muita perseguição, mas deixa transparecer muita resistência e muita resiliência.”

Conhecer a história “ajuda a perceber as assimetrias do presente”. “Falar na cultura também é importante para se perceber que há mais em comum do que se pensa, que não somos assim tão diferentes.”)

II. Ordens de expulsão do Reino de Portugal e dos Algarves

Logo nas Cortes de 1525, em Torres Novas, ecoaram protestos contra os ciganos. Na linha de outros monarcas da Europa Ocidental, D. João III logo ordenou: “Que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem.” (1526)

Voltou a ouvir-se o mesmo clamor nas Cortes de 1535, em Évora. O rei reforçou a disposição: “Mando que daqui em diante nenhum cigano, tanto homem como mulher, entre em meus reinos e senhorios; e que, entrando, sejam presos e publicamente açoutados com baraço e pregão.” (1538) Os naturais do reino que se atrevessem a levar vida semelhante seriam degredados — “dois anos para cada um dos lugares de África”.

Carlos Jorge Sousa, filho de pai cigano e mãe não cigana que fez uma investigação sociológica a partir dos ascendentes, chama a atenção para o contexto. Em Dezembro de 1496, D. Manuel I dera ordem de expulsão aos judeus e aos muçulmanos. Quem não se convertesse teria de sair no prazo de dez meses ou enfrentaria a morte e todos os seus bens seriam confiscados.

No caso dos ciganos, não foi dito e feito. No ano da morte de D. João III (1557), a mulher, Dona Catarina, tornou a mandar expulsá-los, votando os que se atrevessem a permanecer no reino ao trabalho forçado nas galés — com outros condenados e escravos. D. Sebastião (1573) anulou as licenças de permanência obtidas por alguns e deu a todos 30 dias para sair, sob pena de açoitar as mulheres e enviar para as galés os homens. O cardeal-rei D. Henrique concedeu novas licenças (1579), mas delas excluiu os nómadas.

Durante o domínio espanhol, tudo se agravou. Filipe I estabeleceu um prazo de quatro meses, findos os quais deviam ser executados “os que não se avizinhassem nos lugares”, insistissem em “andar vagabundos”, em “viver em ranchos ou quadrilhas” (1592). Filipe II renovou sucessivamente a proibição de entrada (1603, 1606, 1608, 1613, 1614). Excluiu a pena de morte, mas manteve a condenação às galés (1613, 1614).

A sequência de leis levanta dúvidas sobre a sua aplicação. “Quem sabe se tidas por exageradas as medidas penalizadoras caíam no esquecimento, apesar dos castigos a que ficavam sujeitos os prevaricadores”, questiona a historiadora Elisa Maria Lopes da Costa.

Mangas chama a atenção para a “muita dificuldade” que havia em aplicar decisões. “A coroa não tinha recursos. Não chegava a todo o reino.” Não quer isso dizer que não tenha havido impacto na vida dos visados. Mesmo que não fossem expulsos, viviam sob essa permanente ameaça, o que obrigaria a disfarçar, a esconder. “Muitos escrevem ao rei a pedir para continuarem em Portugal.”

(Levar esta história para as escolas

Tais acontecimentos continuam ausentes dos manuais escolares. Analisando os programas de História e Geografia do 5.º ao 12.º, Mangas só encontrou uma referência: uma recomendação de leitura no contexto do Holocausto.

Parece-lhe “urgente” mudar os programas escolares. Para se perceber o contributo e a presença do povo cigano no conjunto da historiografia portuguesa. E para se “reduzir as incompreensões, as tensões”.

No âmbito da autonomia e flexibilidade curricular, qualquer escola pode introduzir este tema. No Alto Comissariado para as Migrações há o Núcleo de Apoio das Comunidades Ciganas com uma equipa pronta para dar formação sobre história e cultura cigana a funcionários públicos.

Há a História do Ciganinho Chico. E o Kit Pedagógico – Romano Atmo (2016), produzido pela Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. E o livro Reflexo – Ferramenta Pedagógica para Uma Nova Relação entre a Escola e as Comunidades Ciganas (2019), projecto da CooLabora, que envolveu professores do Agrupamento de Escolas Frei Heitor Pinto e membros da comunidade cigana de Tortosendo, na Covilhã. E o RISE – Roma Inclusive School Experiences, a experiência portuguesa (2020), de uma equipa da Universidade do Minho.

“Não basta que se fale nos ‘dias de’, como as escolas fazem”, enfatiza a socióloga Maria José Casa-Nova. “Ter o dia da cultura cigana não tem efeito ao nível do que é aprendido em sala de aula. É necessário desenvolver dispositivos a partir de conteúdos curriculares específicos.”

Neste momento, está a coordenar a equipa portuguesa do projecto TRACER – Transformative Roma Art and Culture for European Remembrance. No próximo ano, há-de sair dali uma “proposta de integração no currículo de História de conteúdos relativos ao Holocausto e outras dimensões da história do povo cigano”, a ser elaborada por um conjunto de estudantes ciganos e não ciganos que dele fazem parte, sob supervisão de investigadoras da Universidade do Minho e de Bruno Gonçalves.)

III. Contradições da Guerra da Restauração da Independência

Poucos estudiosos se debruçam sobre a história dos portugueses ciganos. E esses, como escreveu a antropóloga Alexandra Castro, “tendem a enfatizar a sucessão de fenómenos que tornaram os ciganos ‘vítimas da história em vez de seus construtores’, o que poderá estar na origem do perpetuar da imagem mais sombria desta população, esquecendo-se os processos que conduziram a uma hospitalidade territorial e a formas de coexistência mais positivas ou mesmo a alguns feitos importantes”. Exemplo disso é a participação de alguns na Guerra da Restauração (1640-1668).

Recorda Mangas que, logo em 1641, “o conselho de guerra determinou a prisão de todos os ciganos que se encontrassem nos batalhões militares, ‘para se meterem nas galés’ com os ‘mouros’ escravizados”. Há prova de que nem assim desistiram de participar.

A historiadora brasileira Natally Chris da Rocha Menini conta que em 1643 o Conselho de Guerra examinou uma petição enviada por um cigano chamado Fernando de Almeida. “Pedia ao rei a autorização para levantar em Portugal uma companhia de 50 soldados ciganos e, em troca, solicitava a patente de capitão.” O bailio votou contra, alegando que fariam “danos e roubos”.

Mesmo assim, havia ciganos na frente de batalha. Adolfo Coelho cita uma carta do procurador da coroa Tomé Pinheiro da Veiga, sobre um cigano chamado Jerónimo da Costa, que tombou na batalha do Montijo (1644) e no ano passado foi mencionado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Jerónimo da Costa lutou “‘três anos contínuos com suas armas e cavalos à sua custa, sem soldo’”. O rei concedeu à esposa e aos filhos estatuto de naturais do reino, ficando o filho homem destinado a ser oficial mecânico.

Lendo uma petição remetida pela mulher para fazer do genro natural do reino, em 1646, Pinheiro da Veiga intercedeu. “Porque não há-de V. Majestade pagar os soldos devidos a mulher e filhos? E mande V. Majestade passar-lhe alvará de natural e cavaleiro fidalgo, e que nunca tenha nem seus descendentes ofício mecânico. Servirão sempre na guerra e milícia nos postos de soldados e presídios.”

Dir-se-á que a notícia sobre a dedicação de Jerónimo da Costa não alterou a posição de D. João IV. Mandou fixar a residência de dez presos e respectivas famílias, supostamente as últimas famílias ciganas presentes no reino, mas proibiu-as de falar a sua língua e de a ensinar aos filhos, de usar os seus trajes e de ler a sina (1647). Desobedecendo, eles seriam condenados às galés e elas ao degredo em Cabo Verde e Angola sem levar consigo filhos ou filhas.

Na verdade, o rei Restaurador apertou o cerco aos ciganos. Procurando quebrar laços de solidariedade, previu pena de três anos de degredo para Castro Marim para quem lhes desse ou arrendasse casa (1648). “Querendo eu desterrar de todo o modo de vida e memória desta gente vadia sem assento, nem foro, nem paróquia, nem vivenda própria, nem ofício mais que latrocínios de que vivem, mandei que em todo o reino fossem presos e trazidos a esta cidade, onde seriam embarcados e levados para servirem nas conquistas, divididos”, ditou (1649). Só se livravam de tal destino “250 [soldados ciganos] que serviam nas fronteiras, procedendo na forma de traje e lugar dos naturais”.

Ao que apurou a historiadora Elisa Maria Lopes da Costa, ainda convocou os governadores de armas para, no dia 8 de Setembro de 1652, prenderem todos os ciganos que encontrassem. Voltou a fazê-lo para o dia 12 de Setembro de 1654. Nuns sítios, como Elvas, ninguém se prendeu. Noutros, como Salvaterra de Magos, sim. E esses terão sido desterrados.

(Uma experiência exemplar

Soraia Caldeira (n. 2013) frequenta o 3.º de escolaridade e no Dia Mundial do Teatro, 27 de Março, teve oportunidade de vestir a pele de uma personagem d’ A História do Ciganinho Chico. Foi a sua estreia nas artes de palco.

— Porque é que achas que é importante saber esta história?

— É interessante. E, vá, é divertido também saber sobre as coisas.

— Pode mudar a forma como estes meninos vêem os ciganos?

— Pode.

— Como?

— Há muita gente que diz só por ser cigano: ‘Já não quero mais ser amigo.’ Fazem bullying. Acham que são maus. E acho que aqui, como tivemos esta história, mudaram mais a opinião.

— Em que sentido?

— Muita gente no mundo acha que os ciganos são maus, mas não. Uns fazem-se maus, outros podem ser bons.

O Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas tem permitido desenvolver pequenos projectos sobre história cigana. Um deles é o Teatro Nómada, que põe em cena uma adaptação amadora do Ciganinho Chico.

No Dia Mundial do Teatro, essa iniciativa da associação intercultural Sílaba Dinâmica, sediada em Elvas, deslocou-se a Portalegre ao encontro do Lungo Drom, projecto da associação cultural Umcolectivo, financiado pela Calouste Gulbenkian e pela La Caixa, que ambiciona criar o Museu Nómada para circular pelo Alentejo.

Rapazes e raparigas de três turmas de três escolas do Agrupamento José Régio (Assentos, Alegrete e José Régio) acorreram ao Teatro do Convento. As de etnia cigana que as incorporam não apareceram. Algumas não ciganas dispuseram-se a assumir papéis curtíssimos e a brincar ao teatro naquela manhã.

Quando o projecto começou, em Novembro de 2022, a transversalidade da ignorância surpreendeu Cátia Terrinca, responsável pela coordenação artística. Agora sabem que os povos ciganos têm uma história, um hino, uma bandeira. “Mas, tal como um aluno brasileiro [não cigano] não conhecia a bandeira e a achou muito bonita, um aluno [português] cigano disse que via aquele símbolo nas músicas que a mãe punha lá em casa, que o achava muito bonito, mas não sabia o que era.”

Em sala de aula, o responsável pela intervenção social, Rui Salabarda, procura conduzir cada turma de uma perspectiva multicultural para uma intercultural, pôr crianças ciganas e não ciganas a reflectir sobre histórias e tradições, potenciar o diálogo, o conhecimento. Está convencido de que esta é a idade certa para começar. “Tem sido um prazer. A capacidade que elas já têm de perceber, de ver a diversidade cultural como fonte de conhecimento!”)

IV. Assimilação cultural ou deportações para as “conquistas”?

Portugal iniciara logo no século XV uma política de degredo de condenados. Era um “três em um”: libertava-se de indesejados, aliviava as cadeias insalubres e povoava as “conquistas”. Até ao século XIX, havia aí uma particularidade no contexto europeu: incluía ciganos.

Observou-se uma alteração significativa nestas políticas no século XVII. Numa provisão destinada ao corregedor de Elvas, D. Pedro II começou a distinguir os de fora dos “naturais, filhos e netos de portugueses”.

Aquele monarca mandou exterminar os primeiros, “vindos de Castela”. E obrigar os segundos a tomar domicílio certo e a vestir-se “como costume do reino”, sob ameaça de deportação para o Brasil (1686). Chegou a decretar morte aos que continuassem a vagabundear e a usar os seus trajes típicos (1694).

D. João V insistiu nessa política de assimilação cultural forçada, renovando a proibição da itinerância, do traje, da língua, dos negócios de bestas e de “imposturas” como ler a sina. Se teimassem em fazer vida de ciganos, açoites e trabalho forçado nas galés para os homens e degredo no Brasil para as mulheres (1708). D. João V manteve a linha. Reforçou a ordem de prisão e degredo, prevendo que fossem repartidos por Índia, Angola, São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde (1718). E justificou-a com o “descuido” na execução (1745). Após o sismo que destruiu parte de Lisboa, D. José I decretou que trabalhassem na reconstrução da cidade até haver navios que os transportassem para Angola (1756).

A reacção não era igual em todo o lado. No Brasil sobravam queixas, abrindo-se a possibilidade de alguns serem novamente desterrados. Em Angola, o governador, Álvares da Cunha, pedia ao reino que lhe enviassem mais, uma vez que resistiam melhor ao clima.

Lopes da Costa reuniu provas de que muitos dos que iam para o Brasil acabaram em Angola. Olhando para o Registo das Cartas de Guia de Degredados chegados a Angola entre 1715 e 1756, que reproduziu, vê-se muitos ciganos condenados a degredo perpétuo pelo “simples crime” de serem ciganos. Essas penas são tanto mais reveladoras quanto outros eram condenados a dez anos por homicídio.

A Inquisição manifestava pouco interesse nestas pessoas, que viviam à margem. Adolfo Coelho cita um único caso: Garcia de Mira, em 1582, processada por ter feito “aparecer a figura de um defunto num papel posto em água”. Lopes da Costa acrescenta outros, envolvendo degredados para o Brasil. Na primeira visita do Santo Ofício, em 1591, por exemplo, Maria Fernandes confessou que havia “blasfemado, por duas vezes, contra Deus perante as dificuldades que tinha tido para atravessar uma ribeira”. Na mesma ocasião, Apolónia de Bustamante contou que vivera amancebada sete anos com um homem, altura em que, por ele “lhe ter dado má vida, ela, com ira e agastamento, arreganhava a Deus”. Nesse “tempo de agastamento, entregava-se aos diabos, dizendo: ‘Dou-me aos diabos, os diabos me levem já.’”

Mangas está a alargar a base documental, mas já percebeu que há “muito poucos processos”. “Os que encontrámos dizem respeito, sobretudo, a mulheres, por causa da prática da leitura da sina. Os inquisidores tratam aquilo como um engano, não como uma heresia. As penas são pequenas repressões.”

O que lhe parece “muito evidente” nos documentos que tem analisado, é que há todo um “outro mundo, de vivências, de quotidianos”, que tem escapado à historiografia. “São mais integradas algumas destas famílias do que poderíamos pensar, se só víssemos a história dos ciganos pelas leis que contra eles foram escritas.”

No seu entender, “falta um olhar local”. Esses arquivos podem desocultar dinâmicas de solidariedade, mas também de anticiganismo popular. Ao fazer o seu estudo, tem-se deparado com indícios de tensões locais. Ocorre-lhe um documento do século XVII de uma aldeia da periferia de Bragança. Havendo ciganos a aproximar-se, tocavam os sinos, unindo-se para os expulsar.

Seria importante perceber o que pensavam os ciganos, mas não deixaram registo. Para já, não se lhe conhece momento algum de revolta organizada.

Sousa fala em “passividade”, “resignação”. “Não manifestaram uma consciência colectiva e unificadora que permitisse enfrentar a realidade dos diferentes processos históricos”, escreveu. “Encerraram-se neles próprios, na sua estrutura de grupos de parentes, mais ou menos dispersos, articulada com a autoridade dos homens maduros e mais velhos.”

O sociólogo Manuel Carlos Silva, por sua vez, fala em “estratégia de resistência notável”. “Quando não têm recursos ou têm poucos recursos, tudo o que os dominados podem fazer é resistir passivamente. Adaptar-se, acomodar-se, para manter-se em vida, para não morrer.”

(Notas sobre uma revolta que vem de trás

Luís Romão (n. 1982) protagoniza o avô na tal adaptação d’A História do Ciganinho Chico, mas não é um homem do teatro. É mediador e formador. E, como Bruno Gonçalves, tem andado de norte a sul a ensinar História e Cultura Ciganas.

“Nós tentamos fazer ver porque é que a comunidade cigana é ainda tão fechada”, conta. “Porque são séculos e séculos de perseguições, séculos e séculos de sofrimento. Não é por acaso que vivemos isolados do resto do povo. Estamos a falar em 500 anos de resistência.”

Muitas vezes dizem-lhe: “Eh, pá, vocês estão há tantos anos em Portugal e ainda não se conseguiram incluir!” “Integrar”, corrige o irmão, Bernardino, que interpreta o Ciganinho Chico. “Integrar. Nós é que dizemos incluir. Digo-lhes: ‘Há pessoas com uma mente mais aberta. É o meu caso. Entro no povo, saio do povo, estou lá. Mas há pessoas com mente mais fechada.’”

Mais do que aceitar, parece-lhe importante entender. “A revolta não é de agora. A revolta vem dos antepassados, passa de geração em geração. O pai não chega ao pé do filho e diz: ‘Tens de ser revoltado, porque nos fizeram isto ou aquilo.’ Não! O pai não conhece a história.”

Acolhe os teóricos que falam num trauma que se transmite de geração em geração, apesar dos descendentes já não terem a mesma experiência. O trauma intergeracional não persiste como uma memória, mas como uma reacção. Há uma desconfiança, uma atitude defensiva face ao exterior, que tende a ser entendido como ameaçador.

Não acredita que haja muitas pessoas iguais ao avô do Ciganinho Chico. “Acredito que 90% da comunidade cigana não saiba a história do seu povo. Não sabe a origem, não sabe a travessia, não sabe as leis repressivas, não sabe porque deixámos de falar a nossa língua.” Nem quer pensar no que seria se soubessem. “Até tenho muito medo que os ciganos saibam realmente o que aconteceu, porque a revolta ainda se tornaria maior.”)

V. Especial vigilância na República Portuguesa

Com a Revolução Liberal (1820), a Constituição (1822) a Carta Constitucional (1826) abriu-se um novo capítulo: Portugal reconheceu a todos os nascidos no seu território o direito de serem portugueses.

Foi um ponto de viragem na história dos portugueses ciganos. Até então, sublinha Mangas, “não eram considerados portugueses, mesmo que tivessem nascido no Porto, em Lisboa ou em Faro”.

Não era uma cidadania plena. Basta ver uma portaria da polícia de 1848, que previa exigência de passaporte aos ciganos que transitassem pelo reino. E o regulamento para o serviço rural da GNR aprovado em 1920, que mandava sobre eles exercer “severa vigilância”.

Era como se fossem todos iguais. Mesmo na obra fundacional de Adolfo Coelho, de 1892, essa ideia transparece. Ao lê-la, Sousa conclui: “Os estudos que efectuou acerca dos ciganos são determinados não pelo contacto com estes, mas pelo contacto com atitudes dominantes.” Ora, no século XIX já havia elite cigana.

Sousa não tinha um avô que lhe contasse a História dos portugueses ciganos, mas tinha uma tia-avó que contava histórias de família. E guardava num velho baú uma espécie de tesouro: “Fotografias, um estojo de primeiros socorros, jornais e outras coisas mais.”

Chamava-se Esperança. Era como se fosse sua avó. Nos anos 1940/1950, “muitas famílias ciganas deslocavam-se para as então províncias ultramarinas portuguesas para o negócio da venda, que poderia realizar-se de porta a porta, nas feiras ou noutros locais propícios”. Ao mesmo tempo, muitas mulheres praticavam quiromancia e cartomancia. A verdadeira avó, Irene, e o marido, estavam na Madeira. Algo terá acontecido entre a avó e o empregado do casal. Irene foi banida para todo o sempre, nunca mais viu os filhos. E o pai de Carlos Jorge Sousa e os irmãos foram criados por Esperança e pelo marido, António Maia, em Lisboa.

As histórias da tia-avó não ficaram perdidas na memória. Na tese de doutoramento, Sousa investiga as relações interétnicas, as dinâmicas sociais e a estratégias identitárias dos seus ascendentes.

Resgata, por exemplo, a história do bisavô Manuel António Botas, um dos mais bem pagos bandarilheiros do seu tempo. Quando se retirou das touradas, passou a dirigir corridas, primeiro em Santana, depois no Campo Pequeno. “Aparecia com as suas suíças compridas e bem tratadas, chapéu alto e bengala”, conforme citação do Dicionário das Alcunhas Alfacinhas. Também tocava guitarra e cantava fado; foi amigo de Severa, uma lenda da canção nacional. Raphael Bordalo Pinheiro desenhou-o.

Também explora a história do tio-avô António Maia, que foi alquilador da Casa Real e participou na Primeira Guerra Mundial, em 1917, incorporado na companhia de saúde. Era um homem generoso e muito apreciado por ciganos e não-ciganos. Morreu na sequência da inalação de gases durante os combates em França.

Não chegou à história do pai, Manuel Maia, que agora lhe parece tão interessante. Era fadista. Derrubada a ditadura, filiou-se no Partido Comunista Português e integrou a célula do fado de Abril. “Quer o meu pai, quer os meus tios participaram, a seguir ao 25 de Abril de 1974, nas grandes lutas que se travaram.”

O Conselho da Revolução declarou, em 1980, a inconstitucionalidade do já referido regulamento da GNR. A “severa vigilância” sobre os ciganos constituía uma discriminação negativa, estabelecida em função da etnia. A GNR alterou-o em 1985, mas reservou “especial vigilância” aos nómadas.

Na síntese da investigadora Mirna Montenegro Val-do-Rio Paiva, os ciganos passaram da “invisibilidade social” à “marginalidade incómoda ao sistema”. À sedentarização em massa seguiu-se a concentração nos bairros sociais, o declínio do trabalho sazonal e independente, o recurso a prestações sociais, a escolaridade obrigatória, a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, a penetração do culto evangélico, o surgimento do associativismo cigano. A sociedade maioritária foi obrigada a interagir.

Houve choques violentos. Em 1993, a Câmara de Ponte Lima decidiu expulsar uma comunidade, sob suspeita de tráfico de droga. A Procuradoria-Geral da República teve de intervir. Em 1996, formou-se uma milícia popular para expulsar uma comunidade acampada em Oleiros, em Vila Verde, conotada com o tráfico de droga. Viu-se forçada a sair e a vender o terreno. Só com ajuda do governador civil conseguiu assentar noutro concelho.

Ainda agora a perseguição não acabou, diz Casa-Nova. “Agora, a perseguição é a manutenção dos estereótipos e o que a verbalização desses estereótipos faz. São formas diferentes das usadas no tempo da monarquia, mas fazem com que as pessoas muitas vezes se sintam acossadas e têm um efeito prático nas suas condições de vida.”

Manuel Carlos Silva faz o apanhado das generalizações abusivas que nestes cinco séculos foram sendo usadas para justificar as exclusões e as perseguições que levaram a população cigana a forjar uma cultura de resistência: “ladrões”, “intrujões”, “desordeiros”, “preguiçosos” e, nas últimas décadas, “traficantes de droga”, “subsidiodependentes”. Tudo a pesar na hora de frequentar escola, arrendar casa, arranjar emprego, lidar com instituições.

(Narrativas próprias

Olhando para trás, para o princípio, para a peça de Gil Vicente, a actriz e activista cigana Maria Gil (n. 1972) realça “proximidade com o que se apresenta hoje”. O povo cigano ainda é encarado “como o outro, como o que vem”. “Não estamos aqui. Somos daqui. Somos daqui há 500 anos! É este o nosso lugar!”

Embora a identidade étnica permaneça, a história dos povos ciganos revela adaptação aos países onde assentaram. Os portugueses ciganos expressam-se em português. A maior parte não se distingue pelos trajes. Uns poucos sujeitam-se ao modo de vida nómada. Subsiste, todavia, uma divisão entre “nós” e “eles”. “As próprias pessoas ciganas acabam por assumir uma ideia de padronização.”

Equilibrando-se na fronteira, criou uma família mista que detona todos os estereótipos. Ela e um dos seus filhos, Salvador Gil, integram agora o elenco da série policial Braga, criada por Tino Navarro, em exibição na RTP. Outro filho, Vicente Gil, é protagonista da nova época da série juvenil Morangos com Açúcar, na TVI. E isto é fazer história.

Quando se lhe pergunta como tudo começou, fala da influência do curinga Hugo Cruz, d’A Pele, das artes participativas, do teatro fórum, do teatro comunitário. Destaca o processo colaborativo que conduziu à curta-metragem Cães Que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles, filha de pai cigano e mãe não-cigana, que tem usado a sétima arte como arma contra o preconceito.

Maria Gil diz que os filhos gémeos (n. 2001) “estão onde devem estar”. Começaram pequenos, com ela, a fazer teatro comunitário. Estudaram na Academia Contemporânea do Espectáculo. Agora, um está na Escola Superior de Teatro e Cinema e outro na Escola Superior e Artística do Porto. Têm feito cinema e televisão.

Mudaria um figurino de um par de falas, mas está contente com a série Braga. Agrada-lhe pensar no que a sua participação pode significar para outras mulheres ciganas. “Estarão a ver uma mulher cigana a interpretar uma mulher cigana.” Isso provar-lhes-á que aquele espaço não está interdito, que com trabalho é possível chegar lá. E ajudará a introduzir pluralidade na imagem da população portuguesa cigana.

Sente que os portugueses ciganos estão no princípio de um tempo novo. Ainda este ano, vai começar um projecto com o Bestiário. Partilhará a direcção com Teresa V. Vaz. Orientarão oficinas em comunidades ciganas e daí nascerá um espectáculo, que há-de estrear-se no Teatro D. Maria II em 2024. Acredita que envolver pessoas ciganas nas narrativas sobre pessoas ciganas faz toda a diferença. “Não acordo de manhã, ponho uma capa e digo: Vamos salvar o mundo! Mas porque não salvá-lo?”)

Referências bibliográficas

CASTRO, Alexandra, Na Luta pelos Bons Lugares – Ciganos, Visibilidade Social e Controvérsias Espaciais, Alto Comissariado para as Migrações, 2013.

COELHO, F. Adolfo, Os Ciganos de Portugal: com Um Estudo sobre o Calão, Imp. Nacional, 1892.

COSTA, Elisa Maria Lopes, O Povo Cigano entre Portugal e Terras de além-mar, 1997.

GOMES, Bruno Gonçalves, A História do Ciganinho Chico, 2022.

MAIA, Carlos Jorge, Os Maias. Retrato Sociológico de Uma Família Cigana Portuguesa (1827-1957), 2013.

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esse é o capítulo 2.
segue-se capítulo 3
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Portugueses ciganos. O que mudou depois do 25 de Abril de 1974

Cinco décadas de democracia não chegaram para alterar as condições de vida, mas há um processo de transformação em curso.


A vida dos portugueses ciganos está em franca mudança. Recuemos ao pré-25 de Abril de 1974, e façamos uma viagem no tempo. Através de histórias de vida de pessoas de várias idades, residentes em distintas partes do país, podemos ver essa transformação.

Ideias-chave: esperança no processo democrático; sedentarização/concentração em bairros sociais; penetração das igrejas evangélicas; declínio dos modos tradicionais de sustento; recurso a prestações sociais; escolaridade obrigatória; emergência do activismo; tensões entre tradição e modernidade.

O fim da guerra
Quando Francisco Montes (n. 1944) era jovem, no Sul do país falava-se em ciganos “com casa” e em ciganos “de pé”, “encostados às paredes”, que “andavam pelo mundo”. Podiam ser vendedores ambulantes, negociantes de equídeos, tosquiadores de bestas, trabalhadores agrícolas sazonais…

Montes tinha tios e primos “de pé”, que circulavam pelo Algarve, mas os pais levantaram uma barraca de zinco. Ele ainda andou pelas feiras a comprar e a vender cavalos. Cedo arranjou outros trabalhos.

Lembra-se de estar a distribuir gás ali mesmo, em São Brás de Alportel, no distrito de Faro, onde ainda agora mora, e de ser parado por um militar da GNR. “Então? Você já tem idade para ir para a tropa.” Fez-se de desentendido. “Olhe, não sei se tenho ou não tenho.”

Sim, já tinha idade para se apresentar, mas não queria cumprir obrigações militares. “Ninguém queria ir à Guerra [Colonial].” Quem tinha dinheiro fugia para França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, sabia lá ele.

Estava em marcha o êxodo rural. Milhares de pessoas deslocavam-se de aldeias e vilas para os centros urbanos para trabalhar nas fábricas. E esse movimento também incorporava pessoas ciganas. Quantas faziam campanhas agrícolas e iam às fábricas comprar lotes para vender de porta a porta ou em praças, feiras, mercados, levando mercadoria aonde quase mais ninguém levava?

Montes fugiu para Setúbal. Ainda lá andou uns três anos, mas o raio do conflito — que estourara em 1961, em Angola, e alastrara a Moçambique, Guiné, Cabo Verde — nunca mais terminava. “Não vou andar sempre fugido...”, pensou.

O serviço militar obrigatório durava quatro anos. Entregou-se em Faro. Fez praça em Beja. Passou por Évora. Avançou para Lisboa, onde embarcou num navio chamado Niassa. Três anos de luta armada. “A zona que eu estive, muito perigosa, muito perigosa.” Mueda, província de Cabo Delgado, Norte de Moçambique.

Não sabia ler nem escrever. Na sua infância, a escolaridade era obrigatória até à 3.ª classe para as mulheres e à 4.ª para os homens, mas quem se importava? Para comunicar com a família, pedia ajuda aos colegas. “Tinha um rapaz que era daqui. Ele é que me fazia as coisas.”

Recebeu uma carta de uma rapariga com 20 escudos. No regresso, com os copos, falou com um tio dela. “Tive de ficar com ela!” Pela tradição cigana, só a mulher pode romper o compromisso. Ainda viveu com outra. “Queria ver se ela desmanchava aquilo, e nada...”

A tropa tinha um efeito nivelador. Talvez fosse o único momento da vida de um homem cigano em que lhe era dada a sensação de ser um igual. Os soldados vestiam todos o mesmo modelo, comiam todos a mesma comida, corriam todos os mesmos perigos.

Montes sentia-se uma espécie de guarda-costas do capitão, que era de Tavira. “Só me queria ao pé dele.” Amiúde, juntava-se a outro soldado algarvio, que tinha uma viola. Um entoava canções portuguesas ciganas e o outro canções espanholas de vários géneros. Às vezes, já estavam a dormir e o capitão ia acordá-los: “Venham lá!” E lá iam eles espantar o medo.

No mato, a sensação de perigo perturbava-o até durante o sono. Já em casa, dava “saltos na cama”. “Lá andei sempre com aquela coisa. Medo. A olhar para um lado e para o outro. E pronto. A gente veio mesmo ‘coiso’”, concede. “Muitos vieram malucos.

A esperança na democracia
A Revolução de 25 de Abril de 1974 pôs fim àquela guerra distante e fora do tempo. No dia 2 de Maio, a Junta de Salvação Nacional emitiu uma amnistia para quem não cumprira a Lei do Serviço Militar.

Houve uma surpreendente afluência de homens ciganos. No dia 8 de Agosto, a RTP até fez uma reportagem sobre isso no Distrito de Recrutamento Militar de Lisboa, aquele que tinha maior afluxo.

“As várias gerações de ciganos, pelo menos as antigas, não iam ao registo civil”, explicava o major Sousa Dias. “Muitos deles não eram chamados para o serviço militar. Só um ou outro é que se conseguia que fosse incorporado.” Quem estava nessa situação não podia tirar passaporte, carta de condução. “Viram vantagem de regularizar a situação para não serem perseguidos e presos.”

Quando se ouve a voz de homens ciganos ali presentes, não identificados na peça, o que emerge é esperança. “Como isto mudou do 25 de Abril para cá, pode também dar mais umas vantagens aos rapazes”, dizia um. “O cigano português era um ‘bicho’, era português, mas considerado um ‘bicho’”, declarava outro. “A polícia desandava com eles por serem ciganos. Eram escorraçados. Ficámos maçados, toda a raça cigana portuguesa”, salientava. “O cigano vivia atormentado. E agora, como vê que é um país livre, vamos utilizar a nossa documentação para ser apurados.”

A Constituição de 1976 não podia ser mais clara: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.” Mas o Conselho da Revolução tardou. Só em 1980 declarou inconstitucional o regulamento para o serviço rural da GNR que ordenava “severa vigilância” sobre os ciganos. Só em 1985 tal normativo foi alterado, mantendo-se em vigor, todavia, uma “especial vigilância” sobre “nómadas”, a par de mendigos e prostitutas.

António Costa (n. 1944) fugira à guerra. Estivera em Angola três anos com os pais a vender carpetes e voltara para ir à inspecção militar convencido de que ficaria livre. “O meu pai pagou 81 contos. Enganaram-se. Outro ficou livre e eu fiquei apurado. Fugi para França.”

Foi “a salto”, isto é, sem passaporte, como milhares de outros portugueses. Conheceu logo Deolinda Robalo (n. 1950), que não é cigana. “Estava a tirar o Curso de Enfermagem. Namorei este estupor, pronto! Casei-me com 17 anos. Aos 18 tive o primeiro filho, aos 19 o segundo...”

Costa trabalhou numa fábrica quatro anos, mas não gostava daquilo. Gosta de ser dono do seu tempo, de estar ao ar livre, de comprar, vender, negociar. Pode dizer-se que nasceu naquilo. “Nasci em Proença-a-Nova. Ia haver feira. Nasci na véspera, à noite. E no outro dia vim para Caria, Belmonte, a cavalo. Antigamente, era assim.”

Na década de 50, o pai dele começou a fazer negócios com grandes lotes de tecido em Angola, na Madeira, nos Açores. Muitos iam da metrópole para as chamadas “províncias ultramarinas” vender porta a porta, nas feiras e mercados. E Costa foi criado nesse balanço.

Ainda agora, levanta-se de madrugada com a sua Deolinda para montar uma banca de sapatos em Penamacor, no Fundão e noutras feiras da região Centro. “Quando começa o tempo mau, já não vamos”, diz ela. Estando bom, avançam com a ajuda do filho mais velho, Tony.

Ansiando pelo regresso a esse modo tradicional de vida, por volta de 1970 Costa foi à Bélgica buscar um passaporte falso e viajou para Portugal. Em Portugal arranjou nova entidade falsa e seguiu para o Brasil. “Era Joaquim Afonso”, recorda Deolinda, que o seguiu volvido um ano, com as duas crianças. Sabendo da amnistia, voltaram.

De muitas partes vinha gente. Uns praticamente não tinham querer, estavam nas colónias agora independentes. Outros, sim, estavam animados com a mudança. Costa e Deolinda ansiavam por voltar à terra.

Abertura religiosa e ascensão da Igreja Filadélfia
Nos anos de ditadura, o pluralismo cultural e religioso não tivera lugar. As confissões não-católicas causavam estranheza. Com o 25 de Abril de 1974, veio liberdade de consciência, de religião e de culto.

Em França, um homem chamado Clément le Cossec convertera-se à Assembleia de Deus e dedicara-se a evangelizar ciganos. Em Portugal, o caminho fora aberto por Baltazar Lopes, da Assembleia de Deus. Convidara os franceses para o ajudar a converter ciganos, mas acabara por pedir aos espanhóis que assumissem tal tarefa.

Emiliano Jiménez Escudero cruzara a fronteira e formara o primeiro grupo na comunidade cigana de Tortosendo, Covilhã, em 1973. Provocara forte impacto num homem até então dado à bebedeira. Tanto que esse se tornara o primeiro discípulo português cigano — Joaquim Vicente, conhecido por pastor Quim.

No início, os precursores predicavam de porta a porta, em habitações, descampados. Em 1975, já tinham uma barraca na zona da Falagueira, Amadora. Mais um ano, uma igreja na Brandoa. Em 1979, registaram a Igreja Evangélica Filadélfia Cigana de Portugal.

A família Costa conta esta história na primeira pessoa. Deolinda lembra-se de Baltazar Lopes pregar em Belmonte e na Covilhã. Foi baptizada “pelo irmão Dias” antes de viajar para o Brasil. Costa só no regresso, já pelo pastor Quim, que ainda era seu primo.

“O Quim foi nosso pastor muito tempo. Vinha com uma motazinha por aí a fora.” Costa ainda foi candidato, mas preferiu ser diácono, isto é, assumir responsabilidades ligadas à manutenção e funcionamento da igreja.

Tomou a iniciativa de construir em Caria uma pequena igreja. “Pedi dinheiro ao banco. Arrisquei e ganhei dinheiro no bar da igreja para pagar a letra.” Deolinda não gostou. “Houve tanta discussão em casa.” Vinha muita gente ajudar. “Fazíamos aí o almoço.” Tantas vezes os outros iam embora e ele continuava a trabalhar.

No êxodo dos meios rurais para os urbanos, amontoando-se famílias nas periferias das cidades. E a Filadélfia “aproximou-se destes novos espaços, instalando-se no seio (geográfico e social) dos bairros, abrindo locais de culto e reunião em caves, garagens e anexos”, escreveu o investigador Ruy Llera Blanes. Ao estudar o fenómeno, o antropólogo viu como esta soube ajustar-se à cultura cigana: a separação por géneros, o conselho de anciãos, o lugar central da música, incorporando ritmos e melodias do flamenco e da rumba.

Vários investigadores têm dando conta da mudança que esta conversão tem estado a provocar. A socióloga Maria José Casa-Nova, por exemplo, refere como os pastores, embora jovens, começaram a assumir papéis até então reservados aos homens mais velhos, “homens de respeito”. A socióloga Maria Manuela Mendes fala numa maior abertura à sociedade envolvente — “Muitas igrejas são frequentadas por ciganos e não-ciganos”. Repara num aumento dos níveis de literacia — “Muitos sentiram necessidade de perceber melhor os textos bíblicos”. E na flexibilização de práticas tradicionais como a “separação entre contrários”, que alimentava vingança entre famílias desavindas.

Tem um papel regulador do comportamento, esta igreja pentecostal, conservadora. “Posso tomar uma cerveja? Posso. Não posso é embebedar-me”, exemplifica o pastor Mário Cardoso Fernandes (n. 1973), sobrinho do mítico pastor Quim, no fim de um culto em Caria. “O verdadeiro crente não pode apanhar bebedeiras, não pode usar armas, sabe perdoar.” O condicionamento estende-se à expressão musical. Um crente da Filadélfia não pode cantar nem dançar música do mundo/profana, isto é, secular. Só pode cantar música de Deus/sagrada.

Não é a única, esta que já soma 400 obreiros e 120 igrejas. Há outros cultos evangélicas a florescer. Estima-se que abarquem 60% da população cigana. Perguntar-se-á qual será o efeito na cultura cigana. E sobressairá uma clivagem com o associativismo cigano.

“A diabolização da vida boémia foi muito importante nas décadas de 80 e 90, quando muitas famílias ficaram desestruturadas pelo consumo de heroína”, comenta Bruno Gonçalves, dirigente da Associação Letras Nómadas. “O culto evangélico ajudou muitos jovens que andavam perdidos. Mas há um risco para a cultura cigana. Nem nos casamentos entra música secular cigana. Só música evangélica. E as danças ficam de fora.”

O despertar do associativismo ao activismo
José Maria Fernandes (n. 1956) apresenta-se como líder da mais antiga associação cigana de Portugal: Os Viquingues do Bairro de São João de Deus, no Porto. O início de actividade remonta a 1974 e o registo a 1987.

O bairro começara por ser um conjunto de casas térreas (1944). Ganhara oito blocos de habitação, pensados de raiz para alojar pessoas que viviam em “ilhas” (fileiras de casas minúsculas e sobrelotadas da cidade) e pessoas (ciganas) que viviam num acampamento que era preciso desocupar para abrir a Avenida de Fernão de Magalhães (1969).

José Maria era um dos rapazes do acampamento montado num terreno de um particular. Dormia no chão, numa tenda de lona. “Sair de um barraco em que entra água e frio para ir para uma casa da câmara? Os nossos anciães disseram logo: ‘Sim, senhor’. Nem pensaram duas vezes.”

Ninguém sabia no que aquilo ia dar. Era uma das primeiras experiências de realojamento em habitação de portugueses ciganos.

A esta distância, José Maria considera tudo aquilo “ridículo”. “Câmaras de norte a sul do país construírem blocos só para ciganos, bairros só para ciganos, escola só para ciganos? É ridículo. É assim que vamos ser integrados na sociedade? Nunca na vida!”

Nunca gostou de ficar à parte. Sempre teve sonhos. “Fui o primeiro cigano [do acampamento] a fazer a 4.ª classe.” Foi trabalhar para as obras. “Era um trabalho pesado.” Experimentou ser pasteleiro, sapateiro, empregado de balcão. “Eu nunca quis fazer vida de cigano. Queria ter o meu ordenado no fim do mês em vez de andar aí no negócio.”

Em 1974, alguns jovens do bairro quiseram organizar um torneio de futebol. “Os ciganos também queriam participar. Alguns vieram ter comigo para eu treinar uma equipa e entrarmos nesse torneio.” Ainda resistiu, mas aceitou. “Ficamos muito mal qualificados.”

Ainda estava a digerir o resultado quando a Revolução saiu à rua. Uma alegria. “Os ciganos foram os que mais sentiram a liberdade. Os ciganos eram perseguidos pela polícia. A nossa sorte foi haver o 25 de Abril.”

Nos anos que se seguiram, o país viveu uma espécie de explosão do movimento associativo. José Maria continuava a treinar os jovens, mas “não sabia o que era uma associação”. Duas técnicas é que o desafiaram. “Explicaram-me o que era e que benefícios poderia trazer.”

O leque foi-se alargando. “Os jogos começaram a correr melhor. Cada vez que ganhávamos um jogo, começávamos a cantar e a dançar. Ocorreu-me organizar um grupo de danças e cantares ciganos.”

Nos anos 80, a epidemia de heroína já se via nas ruas do São João de Deus (e de muitos outros bairros das periferias das cidades). Chamavam-lhe “o bairro dos ciganos”, “o bairro dos malditos”, “o bairro dos condenados”, “o Tarrafal”, numa alusão ao campo de morte lenta que existira em Cabo Verde.

Tinha começado o processo destrutivo que já este século havia de levar à demolição do bairro. Mas antes disso o Programa Nacional de Luta contra a Pobreza (1990) ainda tentou salvá-lo. Tratou de erradicar as barracas, que entretanto tinham sido erguidas por gente que já não cabia nos apartamentos ou que viera das ex-colónias. Construiu nova habitação e criou equipamentos e serviços de apoio à população.

Os Viquingues eram uma voz local, recreativa. “Miúdos que andavam na rua vinham para a sede jogar às cartas ou jogar bilhar. Em vez de andarem a fazer maldades, estavam connosco”, recorda José Maria. Para que os ciganos pudessem ter uma voz e um rosto junto de organismos públicos, aliou-se ao seu amigo Vítor Marques e criou a União Romani Portuguesa (1998). “O meu maior sonho era integrar as comunidades ciganas na sociedade.”

Tudo se conjugava. Fora criado o Alto Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas (ACIME), actual Alto Comissariado para as Migrações (ACM). A EAPN/Portugal e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tinham começado a formar mediadores ciganos. Associações como a Olho Vivo e o SOS Racismo procuravam alertar a sociedade para a xenofobia, o racismo, a discriminação. O ACIME juntou-se à União Romani Portuguesa para incentivar o nascimento de associações.

A primeira formada por mulheres nasceu em 2000, no Seixal. Na génese da Associação Para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas está um curso de mediação sociocultural promovido pelo Centro Europeu de Estudos sobre Migrações. Um dos formadores incitou Olga Mariano, Anabela Carvalho, Alzinda Carmelo, Sónia Matos e Noel Gouveia.

Tiveram de vencer muitos obstáculos. Conta Sónia (n. 1974) que ajudou estarem ligadas por laços familiares. E Olga (n. 1950) ser uma mulher mais velha, viúva, respeitadora das tradições e respeitada na comunidade.

Os media deram-lhes grande atenção. Assumiram que aquelas mulheres travariam uma luta emancipatória de cariz feminista. E isso obrigou-as a justificar-se, a rejeitar rupturas, a afirmar continuidades.

Embora tomada por homogénea, a população cigana é muito fragmentada. “E patriarcal — o homem é que tem a palavra”, sublinha Sónia. “Nas feiras, vários homens foram perguntar ao meu pai: ‘Quem é que a tua filha pensa que é para estar a falar em nome de todos?’”

Nos primeiros dez anos, reuniam-se em cafés e acondicionavam os papéis na bagageira de um carro. Iam a qualquer lado dar formação sobre cultura cigana a professores e técnicos. “Ter oportunidade de ouvir o outro na primeira pessoa faz cair muitos preconceitos.”

Neste momento, funcionam em instalações cedidas pela Câmara do Seixal e estão a desenvolver, em parceria com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, acções de formação com técnicos escolhidos a dedo, “num horário viável para mulheres ciganas, habituadas a outra forma de estar”. Sónia quer ajudar todas as mulheres ciganas a ganhar autonomia, mas sobretudo as viúvas. “Estão no fim da linha.”

De um associativismo incipiente, recreativo, desportivo, cultural, germinou um activismo assente em microgrupos, baseados na existência de laços familiares, mas a tentar transformar discursos e práticas sobre as pessoas ciganas.

Procurando a origem desse movimento hoje audível, Sónia destaca o rendimento mínimo garantido (1997), actual rendimento social de inserção (RSI). “O que movimentou a comunidade cigana foi o RSI. O RSI obrigou os técnicos a desenhar planos de inserção para as pessoas.” Os adultos começaram a ser convocados para cursos de alfabetização, formação de competências, formação profissional. “Começámos a estudar, a ganhar conhecimento, a tomar consciência.”

Tinha recorrido a essa medida e, por isso mesmo, sido recrutada para o tal curso. Fora retirada da escola mal terminara o 4.º ano para cuidar dos três irmãos. “Aos 13, a minha mãe chegava e tinha a casa arrumada e o almoço feito. Aos 15, já sabia levar uma casa.” Estava pronta para se casar, como faziam as raparigas ciganas da sua idade. Mas queria mais. E o RSI deu-lhe a possibilidade de chegar ao pé do pai dela e dizer que “tinha um contrato assinado que obrigava a tirar um curso”. Nunca mais deixou de trabalhar. Está a terminar a licenciatura em Educação Social.

O impacto das políticas públicas
Francisco Azul (n. 1992) faz parte do primeiro grupo de licenciados portugueses e ciganos com visibilidade pública. Estudou Serviço Social no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.

Não se põe em bicos de pés a fazer discursos sobre os seus méritos. Deixa claro que esse é o resultado de um caminho individual, mas também colectivo, que começou lá atrás, quando tinha seis anos e se mudou de uma barraca, no Barreiro velho, para uma casa, no Bairro Social da Quinta da Mina.

Ainda se lembra, “como se fosse hoje”, da primeira vez que entrou naquela casa. “Tinha paredes superbrancas, cintilantes, e um espaço verde, enorme, mesmo em frente.” Não sabia explicar, mas sentia que, vivendo naquele lugar luminoso, teria outras oportunidades.

Em 1997/98, quando Francisco entrou na escola mais próxima de casa, no básico e secundário havia 5921 estudantes de etnia cigana. Quando se aproximava do fim do seu percurso, em 2018/2019, pelas contas da Direcção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, somavam 22.556 (25.140, com o pré-escolar). Já todos terminavam o 1.º ciclo, mas iam-se perdendo de ano para ano até somarem muito poucos no secundário.

Todo o Estado-Providência contava: a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde, o sistema de Segurança Social… Entrando na União Europeia, Portugal começara a levar mais a sério o combate às desigualdades.

Francisco sentia o impacto do Programa Especial de Realojamento (1993), pensado para acabar com as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. E do RSI, que veio atenuar a severidade da pobreza e pressionar a escolarização.

Já neste século, o país avançou para novas formas de intervenção educativa. Veio o Escolhas (2001), que começou por ser um programa de prevenção de delinquência juvenil e evoluiu para a inclusão social de crianças e jovens de contextos vulneráveis. E o Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (2012), que levou mais meios às escolas das zonas críticas para reduzir a indisciplina, o absentismo e o abandono escolar.

Francisco frequentou o Escolhas lá do bairro. “Pintava, desenhava, fazia os trabalhos de casa. Aquilo, para mim, era muito bom.” Permitia-lhe chegar à escola com os trabalhos feitos e conviver com pessoas de outros contextos. “Quando os técnicos mudavam, era uma choradeira.” Foi com eles que pela primeira vez foi à praia.

Nunca os pais lhe perguntaram se já fizera os deveres escolares. “Nunca foram à escola. Não sabem ler. O meu pai era o filho mais velho e tinha de ajudar os meus avós. E a minha mãe era das mais novas e tinha de ajudar a cuidar da casa. A escola estava ausente dos nossos processos de socialização enquanto família.”

A expectativa, lá em casa, era evidente. “O meu avô foi vendedor. O meu pai é vendedor.” Só que o rapaz olhava para o espaço verde em frente a casa e idealizava outro futuro. Feito o 9.º ano, matriculou-se num curso profissional de Gestão de Desporto.

“Houve um esforço da escola para me perceber e para me ajudar, tendo em conta as dificuldades”, sublinha. Facilitou o agrupamento ter sido considerado Territórios Educativos de Intervenção Prioritária. “Havia psicóloga, assistente social, mediadora cigana. E elas iam-me ajudando, iam-me motivando, a par de alguns professores.”

Até então, não havia qualquer política pública específica. Só quando a Comissão Europeia instou os Estados-membros (2011), Portugal admitiu necessidade e aprovou uma Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (2013-2023).

O primeiro Estudo Nacional (2014) traçou um retrato de pobreza persistente e de exclusão nas mais diversas esferas. O ACM percebeu que não bastava esperar que cada área fizesse a sua parte — Habitação, Saúde, Educação, Emprego e Formação Profissional, Segurança Social. Era preciso sensibilizar, combater a discriminação, promover o ensino da história e da cultura ciganas, a igualdade de género, o associativismo. Lançou o Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (2015), que financia pequenos projectos desenvolvidos por entidades públicas e privadas sem fins lucrativos. E o Programa de Apoio ao Associativismo Cigano (2017).

O Conselho da Europa tinha entrado no jogo, em 2011, com o projecto Romed, primeiro formando mediadores e incentivando a criação de associações, depois incitando grupos de acção local. Na sequência disso, a sociedade civil ensaiou práticas de acção positiva.

Nasceram novas políticas públicas: o OPRE (2016) para ajudar pessoas ciganas a frequentar o ensino superior. E o Roma Educa (2019) para fortalecer as que ainda estão no 3.º ciclo do básico e do secundário. E o ROMED (2019) para capacitar líderes, formar mediadores, estimular a criação de grupos de acção local.

“Acho que estamos a fazer história”, diz Bruno Gonçalves, que é uma das figuras centrais do OPRE e do ROMED e foi quem esboçou a ideia do que veio a ser o Roma Educa. “Pela primeira vez, temos políticas de afirmação positiva. De certo modo, [estas são políticas de] reparação histórica. Neste momento, temos quase 40 licenciados.”

Francisco participou logo no projecto-piloto do OPRE, promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e pela Associação Letras Nómadas (2015). Teve direito a bolsa, mentoria, curso de capacitação. A esse respeito, gosta de citar Olga Mariano: “Podemos ser quem quisermos sem deixar de ser quem somos.” Ainda estava a estudar quando começou a trabalhar no ACM. É um dos técnicos do Núcleo de Apoio às Comunidades Ciganas.

“Gostamos de resultados imediatos”, observa. “Quando falamos em comunidades ciganas, temos de pensar num trabalho de várias gerações.” O ponto de partida era muitíssimo baixo. “Estamos a começar a ver resultados agora.”

Tensão entre tradição e modernidade
Aos 50 anos da Revolução, os portugueses ciganos estão mais visíveis do que nunca. Pelas estimativas do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, há uma forte concentração em bairros sociais (46%), mas representam 3% da população aí residente. Há possibilidade de encontro nos bairros, nas escolas, nas universidades, nos centros de saúde, nos hospitais, nos centros de emprego, nos centros qualifica, no mercado de trabalho formal, nas superfícies comerciais, nas zonas de lazer…

Com a instauração da democracia e a adesão à União Europeia, Portugal viveu uma mudança acelerada. Prolongaram-se os percursos escolares, aumentou a idade média do casamento, diminuiu o número de filhos, há mais divórcios, mais esperança de vida. “Com os ciganos, que estiveram tanto tempo num processo de rejeição e afastamento histórico, a abertura vai sendo feita mais devagar, pouco a pouco”, resume Maria Manuela Mendes.

Os estudos apontam para dinâmicas que concorrem para preservar as tradições, como os casamentos entre ciganos e o controlo social. E dinâmicas que concorrem para a mudança: além dos mencionados ao longo do texto, o acesso generalizado à comunicação social e às tecnologias de informação e comunicação.

Susana Silveira (n. 1989) está a desbravar caminho. É uma das primeiras portuguesas ciganas a conduzir no universo de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica (TVDE). Co-fundou a associação Costume Colossal (2019). Está divorciada e é mãe de dois filhos.

Também saiu da escola aos nove anos com um destino traçado. E durante anos não se desviou. Aos 18 anos, casou-se com um rapaz cigano, mudou-se de Almada para o Norte do país e iniciou-se nas vendas porta a porta. Confrontada com o declínio do modelo de negócio tradicional, tentou outros mercados. Durante um ano, experimentou trabalhar em vendas no México. Tornando a Portugal, pôs-se a fazer um circuito de feiras. Perante a crise da dívida soberana (2009), fez as malas e foi para o Brasil.

Queria dar o salto, mas sentia as limitações da baixa escolaridade. Sabia argumentar, regatear, persuadir. Tinha experiência, responsabilidade, autonomia. “Embora tivesse capacidade para estar à frente de uma loja e vender tudo e mais alguma coisa, ficava aquém, porque não tinha escolaridade suficiente.”

Não se pode dizer que tenha ficado parada. “Procurei todas as ajudas que havia.” Tornou-se frequentadora assídua de um gabinete de inserção profissional. Teve oportunidade de aprender a usar um computador e de trabalhar na área da contabilidade. Com a mãe doente, a perder o andar, assumiu o papel de cuidadora. Veio a pandemia de covid-19, pôs-se a fazer vendas através do Facebook. Há um ano, fez o curso de condutora TVDE.

A plataforma não a discrimina por ser cigana. “Temos muitas pessoas de etnia cigana empresárias de TVDE que podem facilitar o aluguer do carro.”

Ao conduzir pela Grande Lisboa, é amiúde tomada por brasileira. Se questionada, clarifica: “Sou portuguesa.” Alguns arriscam: “És portuguesa, mas és diferente”. Esclarece: “Sou cigana.” E há clientes que saltam ais de espanto. “Não esperam ver uma cigana trabalhar. As ciganas, naquilo que é a visão que as pessoas têm, está em casa a cozinhar e a tomar conta dos filhos.”

“Estamos a percorrer o mesmo caminho que vocês”, sublinha. O que se dizia há 40 anos das mulheres que se divorciavam e saiam de casa para trabalhar? “Estou a trabalhar para sustentar os meus filhos. A minha filha tem 13 anos e passou para o 8.º e o meu filho tem 11 e passou para o 6.º. Dou-lhes a oportunidade de sonhar com algo que eu na idade deles nem sabia que era viável: uma profissão, uma carreira.”

Quando se lhe pergunta que tradições ciganas importa preservar, remete para os valores. Fazendo a mesma pergunta a outros activistas, as respostas vão-se repetindo: o amor pelas crianças, o casamento cigano, o respeito pelos mais velhos, as leis, o luto.

As “leis ciganas” não estão escritas. São de transmissão oral. Regem a vida familiar e social das comunidades ciganas. Servem para mediar conflitos. Também há quem lhes chamada “leis de apaziguamento”.

No Bairro da Biquinha, em Matosinhos, por exemplo, podemos encontrar um “homem de respeito”, “homem de leis”, “homem de paz”: José Maria “só” (n. 1957), a quem a idade e as mazelas pedem descanso.

Procurou sempre levar uma vida honrada, com a mulher, Ivone Gregório (n. 1951). Sempre respeitou as tradições. Sempre trabalhou. “Quando precisavam de um guarda, mandavam-me chamar. Trabalhei 12 anos nos frigoríficos. Depois fui para o aeroporto três anos. Vim aqui para o Hospital Pedro Hispano dois anos...”

O Bairro da Biquinha é grande, mas os residentes ciganos estão concentrados em dois blocos situados na mesma rua. “Muito barulho. Muita conversa. Às vezes, zaragata. E eu não gosto. Sou a pessoa mais velha aqui. Qualquer coisa, mandam-me chamar.”

Não sendo familiar de uma das partes, sendo a sua autoridade acolhida, ouve o que há a dizer e “dita as leis”. “Meto-me ali no meio. Falo com um, falo com o outro. ‘Olha, tu estás a fazer mal, recebe o bem dessa pessoa’, e aqui fazemos uma família entre todos.”

Quando se lhe pergunta que tradições ciganas importa preservar, fala no amor pelos filhos, as filhas, a mulher. Só a seguir refere a palavra dada, a virgindade das mulheres solteiras, o casamento cigano, a fidelidade das pessoas casadas, o respeito pelos mais velhos, o luto.

Na virgindade das mulheres solteiras assenta a honra das respectivas famílias. “Vamos supor. Se eu tiver uma filha e ela estiver pronta para casar com o tipo que ela gosta, ela tem que estar honrada, está a perceber? Se estiver desonrada, vai-se embora.” É rejeitada? “Vai-se embora daqui para fora. Pode ser uma filha minha ou de outro qualquer, a gente manda embora.”

Esperança no futuro
Nesta permanente tensão entre tradição e modernidade, resistir ou deixar ir, as condições de vida continuam difíceis. Embora sejam feitos em zonas residenciais de concentração de pessoas ciganas, deixando de fora as classes médias e altas que vivem dispersas pelo território nacional, os inquéritos da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia não deixam de ser um indicador: em 2021, 96% da população portuguesa cigana vivia abaixo do limiar da pobreza, 56% em privação material severa; as mulheres ciganas vivem em média menos dez anos do que as outras portuguesas e os homens ciganos menos 8,5 do que os outros portugueses.

“Já não vai ser no meu tempo, mas acredito que os meus filhos vão viver uma realidade diferente”, torna Sónia Matos. O rapaz está com 13 e a rapariga com seis. Será uma questão de décadas, portanto.

Os sinais estão à vista. “Tenho visto cada vez mais meninas no 8.º e no 9.º ano.” Da última vez que esteve numa escola, foi abordada por uma. “Eu quero ser como vocês. O que é que eu posso fazer?”, perguntou. “Tens de continuar a estudar. Por mais que te digam ‘não é para nós’, continua.” Sónia julga que conseguirá. “A mãe [daquela menina] não liga ao que dizem”. Não deverá ceder à pressão para a retirar da escola antes que se apaixone por um não-cigano.

Há lutas para dentro e lutas para fora. Explicar que estudar não impede de ser cigano é uma luta para dentro. Explicar que nem todos os ciganos são iguais é uma luta para fora. Sónia e outros activistas actuam nas duas frentes.

“Os professores interiorizam que estas crianças não vão dar em nada, que não vale a pena”, lamenta. “Hoje há mais abertura. Há professores com uma vontade e um pensamento diferente dos mais antigos. Acho que é por aí que a gente pode fazer a alteração. Acredito que a comunidade cigana vai conseguir por via da educação.”

Nesse caminho de inclusão, também será preciso mais abertura de quem tem ofertas de emprego e casas para arrendar ou vender. Sónia pode estar um dia inteiro a contar histórias de racismo, ciganofobia, discriminação que obrigam a morar em bairros sociais e a figurar em listas de desempregados. Mudar isso “diz respeito a todos”.

Referências bibliográficas e audiovisuais

BLANES, Ruy Llera, Os Aleluias – Ciganos Evangélicos e Música, Imprensa de Ciências Sociais, 2008.

BRINCA, Ana, “’Da pobreza ao enriquecimento, da fronteira à mistura’: ser cigano antes e depois do 25 de Abril à luz de uma abordagem estrutural-dinâmica, in BASTOS, José Gabriel Pereira (org.) Portugueses Ciganos e Ciganofobia em Portugal, Edições Colibri, 2012.

CASA-NOVA, Etnografia e produção de conhecimento –reflexões críticas a partir de uma investigação com ciganos portugueses, ACM, 2009.

Ciganos no distrito de recrutamento militar, RTP, 1974/8/8,

FERREIRA, Teresa Leal (coord), Caracterização das condições de habitação das comunidades ciganas residentes em Portugal, Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, 2015.

MENDES, Maria Manuela, MAGANO, Olga, CANDEIAS, Pedro, Estudo Nacional sobre as comunidades ciganas, ACM, 2014.

MENDES, Maria Manuela, Nós, os Ciganos e os Outros, Livros Horizonte, 2005.

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RODRIGUES, “Associativismo cigano no feminino e o seu papel de regulação das disfuncionalidades da tradição cigana: um estudo de caso na AMUCIP, in BASTOS, José Gabriel Pereira (org.) Portugueses Ciganos e Ciganofobia em Portugal, Edições Colibri, 2012.