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True Story Award 2024

A volta do Ubirajara

Como um fóssil brasileiro contrabandeado para um museu alemão e devolvido agora ao Brasil se tornou mascote da decolonização da paleontologia

O domingo, 4 de junho, era o dia que o paleontólogo Allysson Pinheiro vinha aguardando havia mais de dois anos. Pinheiro é diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, no Sul do Ceará, que reúne fósseis de plantas e animais extintos que viveram naquela região há mais de 100 milhões de anos. Naquele dia, o pesquisador foi a Brasília receber a mais nova peça do acervo do museu, que é também a mais famosa: os fósseis do dinossauro Ubirajara jubatus. O material tinha sido contrabandeado há mais de quinze anos e foi parar em Karlsruhe, no sudoeste da Alemanha. Estava sendo repatriado depois de uma ruidosa campanha promovida por cientistas brasileiros desde o final de 2020.

Eram 22h40 quando pousou em Brasília o avião trazendo o Ubirajara, junto a uma comitiva do governo alemão em viagem oficial ao Brasil. Pinheiro aguardava no setor do aeroporto reservado a autoridades, com representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), do Itamaraty e da Embaixada da Alemanha no Brasil. O paleontólogo foi ao pátio acompanhar de perto o desembarque das duas grandes caixas de madeira do compartimento de carga da aeronave. No que dependesse dele, abriria os recipientes ali mesmo, mas a tarefa ficou marcada para o dia seguinte. As caixas foram da­li para um abrigo provisório na sede do MCTI, na Esplanada dos Ministérios.

Na manhã de segunda-feira o paleontólogo pôde enfim conhecer o dinossauro. Depois que um funcionário desparafusou as caixas, Pinheiro retirou várias camadas de isopor e plástico e revelou as duas placas de calcário laminado com os fósseis do Ubirajara. As fotos da solenidade registram a felicidade estampada no rosto do paleontólogo diante do réptil. Pelas imagens que tinha visto antes, o bicho lhe parecera meio feioso, mas ele já mudou de ideia. “O fóssil não é fotogênico, mas é lindo”, disse Pinheiro à piauí. “Não dá para perceber a beleza dele pelas fotos.”

As placas que preservaram os restos do Ubirajara medem 46 por 47 cm cada. Numa delas é possível ver uma pata do bicho, um pedaço da coluna vertebral e a impressão de sua cauda. Já a outra apresenta um emaranhado de estruturas difíceis de discernir: são restos dos tecidos moles que acabaram preservados na rocha.

O Ubirajara jubatus era um animal miúdo, do porte de um frango, mas, devido à cauda, seu comprimento passava de 1 metro. Era um dinossauro carnívoro que se alimentava provavelmente de pequenos animais. O bicho tinha um par de hastes espetadas em cada ombro, que ficaram preservadas nos fósseis. Os cientistas não sabem ao certo para que serviam essas hastes, mas suspeitam que tivessem a função de atrair parceiros para o acasalamento – estruturas similares foram observadas numa espécie de ave-do-paraíso, que vive na Indonésia. São elas que inspiraram o primeiro nome do bicho – Ubirajara quer dizer “senhor da lança” em tupi. Já a segunda parte do nome alude à juba do réptil, que tinha o dorso coberto por uma penugem formada por estruturas parecidas com penas. Para os paleontólogos, esse é o aspecto mais interessante do Ubirajara. Dinossauros com penas já tinham sido encontrados em outras partes do mundo, mas nunca no Hemisfério Sul.

Aquele animal viveu há cerca de 110 milhões de anos, e os paleontólogos acreditam que um bicho do seu porte talvez durasse duas ou três décadas. Seu cadáver provavelmente foi parar no fundo de um grande lago de águas rasas, pobres em oxigênio e ricas em carbonato de cálcio, o que impediu a total decomposição, inclusive dos tecidos moles. Essa é a razão por que os fósseis da Bacia Sedimentar do Araripe, onde o Ubirajara foi encontrado, preservam detalhes de estruturas orgânicas que geralmente não sobrevivem ao processo de fossilização.

Depois que se fossilizou, o Ubirajara passou dezenas de milhões de anos imprensado entre camadas de calcário depositadas na bacia sedimentar. Ao longo das eras geológicas, as camadas que ficavam no fundo daquele lago foram soerguidas por movimentos tectônicos e pararam no topo da Chapada do Araripe, que abrange parte dos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. Por isso é comum que os fósseis do Cretáceo, período em que viveram os dinossauros, aflorem naquela região. Por causa da abundância e da excelente qualidade de preservação, são cobiçados por pesquisadores e colecionadores de todo o mundo.

 

Não se sabe ao certo em que circunstâncias os fósseis do Ubirajara jubatus foram encontrados, supostamente em 1995. O mais provável é que tenham aparecido numa das dezenas de pedreiras que há na Chapada do Araripe, durante a atividade rotineira de extração das lâminas de pedra cariri, usadas na construção civil. Fósseis costumam aparecer em grande quantidade nesse processo de mineração.

Após serem coletados, os fósseis foram incorporados ao acervo do Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe (conhecido pela sigla SMNK), no estado alemão de Baden-Württemberg. Passaram anos nos porões, até que paleontólogos decidiram estudar o material e descrever aquela espécie, desconhecida pela ciência até então.

Quem primeiro teve a curiosidade despertada pelo animal foi o paleontólogo David Martill, da Universidade de Portsmouth, do Reino Unido. Martill é amigo e colaborador de longa data de Eberhard Frey, então curador e diretor do Departamento de Geociências do SMNK. A análise dos fósseis foi conduzida por Robert Smyth, aluno de doutorado de Martill, e publicada em dezembro de 2020 na revista especializada Cretaceous Research, num artigo assinado por cinco cientistas da Alemanha, do Reino Unido e do México.

Tão logo saiu o estudo, paleontólogos brasileiros puseram a boca no trombone: o Ubirajara tinha saído ilegalmente do país. Os fósseis são propriedade da União no Brasil, conforme estipula um decreto-­lei assinado por Getúlio Vargas, em 1942. O país até permite que eles sejam enviados para o exterior, com a devida autorização. Mas os holótipos – como são chamados os espécimes a partir dos quais se faz a descrição original de uma espécie – têm que ficar guardados numa instituição brasileira. Portanto, o Ubirajara jubatus não poderia estar na Alemanha.

Os fósseis que afloram na Bacia do Araripe geralmente são de espécies corriqueiras, como o peixe Dastilbe crandalli, que aparece aos milhares. Mas de vez em quando surge um bicho mais raro, como um pterossauro (um réptil voador extinto) ou um dinossauro da importância do Ubirajara. Como pertencem à União, os fósseis não podem ser vendidos. Mas com a crise econômica, a pobreza na região e os salários magros pagos pelas pedreiras, os operários ficam vulneráveis ao assédio dos traficantes e atravessadores. Na outra ponta desse mercado estão colecionadores e pesquisadores interessados em pagar caro pelos fósseis – os mais valiosos são vendidos a preços que chegam a sete dígitos.

Foi assim, ilegalmente, que boa parte dos fósseis muito raros descobertos na Bacia do Araripe deixou o Brasil. Na maioria, continuam depositados em instituições no exterior, onde são estudados por cientistas estrangeiros. Muitos pesquisadores brasileiros que estudam esses fósseis são obrigados a viajar para o exterior para fazê-lo.

O Ubirajara não é a primeira espécie do Araripe descrita a partir de material contrabandeado, nem foi o primeiro caso de tráfico denunciado pelos cientistas. A diferença é que dessa vez os protestos furaram as bolhas dos pesquisadores e fizeram barulho além do meio científico. A revista Cretaceous Research despublicou o artigo de Robert Smyth, Eberhard Frey pediu aposentadoria e o diretor do museu alemão, que também era coautor do estudo, renunciou ao cargo. Pela primeira vez a Alemanha aceitou devolver um fóssil tirado ilegalmente do Brasil, abrindo um precedente que pode estimular a repatriação de outros espécimes.

 

O retorno do Ubirajara jubatus coroa o sucesso de uma campanha lançada nas redes sociais pela paleontóloga Aline Ghilardi, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Assim que saiu o artigo de Smyth descrevendo o novo dinossauro com penas, Ghilardi fez uma série de postagens no Twitter expondo sua contrariedade com o fato de aquele dinossauro brasileiro ter sido descrito por cientistas estrangeiros com base em material guardado no exterior. Após explicar as leis que proíbem que fósseis sejam levados para fora do país, ela lançou a hashtag da campanha: #UbirajaraBelongsToBR, ou “Ubirajara pertence ao Brasil”.

Ghilardi leu o artigo no dia em que ele foi publicado e, assim que bateu o nome na lista de autores, teve um mau pressentimento. “Lá vem a mesma coisa outra vez”, pensou. O artigo era assinado por pesquisadores que já tinham descrito outros répteis extintos do Brasil, levados daqui em circunstâncias duvidosas. O protesto de Ghilardi viralizou, espalhando-se para além do círculo dos paleontólogos. “O que tem de diferente é que conseguimos acessar pessoas que não eram da academia para discutir esse tema”, disse ela à piauí.

Alguns fatores ajudaram a difundir o caso. Era o primeiro Natal da pandemia, com muita gente confinada em casa. “E essa era uma história que engajava: as pessoas queriam saber mais sobre dinossauros e por que aquele fóssil tinha que estar no Brasil”, continuou a pesquisadora. Artistas profissionais e amadores fizeram desenhos do Ubirajara cobrando sua devolução. A hashtag #UbirajaraBelongsTobr foi usada mais de 4 mil vezes por dia no Twitter em dezembro de 2020, de acordo com um levantamento feito pelo paleontólogo Juan Cisneros, da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Por trás da campanha havia um sentimento de frustração por parte dos pesquisadores brasileiros com um capítulo da história da paleontologia que poderia ter sido escrito no país. Em 1996, cientistas chineses descreveram o Sinosauropteryx, um animal de cauda listrada que pesava meio quilo e viveu no nordeste da China. O bicho era coberto por filamentos finos similares a penas, um tipo de estrutura que nunca tinha sido observado nos dinossauros não avianos. (As aves, que podem ser consideradas dinossauros contemporâneos, descendem de um grupo desses répteis que sobreviveu ao impacto do asteroide que dizimou boa parte da vida na Terra por volta de 66 milhões de anos atrás.) “A partir daquele momento a China virou um grande polo de paleontologia, atraindo investimentos e pesquisadores”, disse Ghilardi. Se o estudo do Ubirajara tivesse sido publicado em 1995, seria o primeiro dinossauro com penas descrito no mundo. “Ele podia ter mudado a história da paleontologia, mas em vez disso passou 25 anos na gaveta de dois incompetentes que levaram tantos fósseis brasileiros que não deram conta de publicar tudo.”

 

O Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe foi inaugurado em 1785 e ocupa atualmente um prédio construído no século XIX e reformado após os bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Como várias instituições europeias do mesmo gênero, o SMNK nasceu das coleções formadas nos chamados gabinetes de curiosidades montados por nobres, aristocratas ou viajantes endinheirados. Esses espaços podiam reunir animais empalhados, amostras botânicas, instrumentos científicos, artefatos etnográficos e todo tipo de objetos trazidos das colônias que os países europeus mantinham pelo mundo afora. Com a institucionalização das disciplinas científicas, muitas dessas coleções foram incorporadas ao acervo dos museus de história natural que começaram a se estabelecer no século XVIII.

Com espaço expositivo de cerca de 5 mil m2, o SMNK figura entre os maiores museus do gênero na Alemanha, embora Karlsruhe não esteja entre as vinte cidades mais populosas do país. O verdadeiro tesouro da sua coleção, porém, não está aberto para o público, mas guardado nos porões da instituição. “O material não publicado é o que tem de mais interessante”, disse à piauí o paleontólogo cearense Felipe Pinheiro. “Tem coisas inacreditáveis.” Em 2012, Pinheiro conheceu de perto a coleção do SMNK, quando passou ali uma semana examinando espécimes do acervo para sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – hoje ele é professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no interior gaúcho. O paleontólogo contou que os fósseis de Karlsruhe ficam guardados num porão labiríntico que foi usado como bunker durante a Segunda Guerra, conforme ele ouviu de Eberhard Frey.

Também conhecido entre seus colegas como “Dino” Frey, o antigo curador do museu visitou várias vezes a Bacia do Araripe e ajudou a descrever espécies locais como o pterossauro Tupandactylus navigans, cujo holótipo está guardado em Karlsruhe. Antes, os fósseis brasileiros já tinham chamado a atenção de seu conterrâneo Peter Wellnhofer, um estudioso de pterossauros que fez carreira no Museu Paleontológico de Munique e está aposentado. Seguindo os passos de Wellnhofer, Frey e outros colegas atuaram no Brasil e garantiram a continuidade do fluxo de fósseis do Cariri para a Europa.

Foi Frey quem acolheu Pinheiro na semana que ele passou no SMNK. O alemão lhe confiou uma chave que dava acesso às coleções e passe livre para explorar o acervo. “Mexi em praticamente tudo, até onde não devia”, brincou Pinheiro. O material era notável não só pelos pterossauros, que ele tinha ido estudar. “Eles têm uma das melhores e mais representativas coleções de tetrápodes”, disse o pesquisador, referindo-se ao conjunto dos vertebrados terrestres que têm quatro membros.

Pinheiro ficou impressionado com um crânio de pterossauro preservado em três dimensões com detalhes impressionantes. “Está perfeitinho.” Seu palpite é que se trata de um jovem Anhanguera, um réptil alado bem conhecido do Araripe. Também lhe chamou a atenção o esqueleto completo de outro réptil voador, com as asas e as pernas bem nítidas. “Não tem nada parecido com isso no Brasil”, afirmou. Pareceu-lhe que os fósseis brasileiros mais valiosos estavam todos no exterior, como ocorre com os melhores grãos de café, que são reservados para exportação. “Nossas coleções no Brasil são boas, mas os materiais mais bonitos do ponto de vista estético e mais relevantes do ponto de vista científico estão fora do país.”

O pesquisador viu o Ubirajara jubatus nos porões do SMNK oito anos antes de a espécie ser formalmente publicada. Os fósseis ainda não estavam totalmente preparados, mas ele suspeitou que se tratava de um dinossauro com penas. Como estava mais interessado nos pterossauros e crocodilos do acervo, não viu muita graça no bicho. “O Ubirajara é um fóssil que não tem muito apelo estético”, disse. “Mas, para a paleontologia, os mais importantes normalmente não são os mais bonitos.”

Uma lição que Pinheiro tirou daquela visita é que nem sempre procede o argumento de que as instituições europeias têm uma infraestrutura melhor que as brasileiras para a conservação dos fósseis. “No caso de Karlsruhe, isso não é verdade”, observou. Em 2012, os fósseis estavam guardados num ambiente úmido, em estantes e gavetas de madeira, o que não é ideal para sua conservação. “O padrão para toda coleção científica de respeito são armários de aço com módulos compactadores.”

Pinheiro contou que Frey o convidou para estudar com ele um dos esqueletos completos de pterossauro do acervo do museu. Para um paleontólogo, descrever um espécime daquela qualidade seria um privilégio. Mas o cientista cearense entendeu que o convite era uma tentativa de legitimar o estudo do fóssil exportado ilegalmente, e recusou o convite. Frey não respondeu aos pedidos de entrevista enviados pela piauí.

 

Quando os alemães foram acusados de tirar o fóssil do Ubirajara do Brasil de forma ilegal, Frey apresentou um documento que o autorizava a levar o material para o museu de Karlsruhe. Tratava-se de uma permissão emitida em 1º de fevereiro de 1995 pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia federal então responsável por fiscalizar a coleta de fósseis no Brasil, depois substituída pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Escrito em termos genéricos, o documento permitia o transporte de “duas caixas contendo amostras calcárias com fósseis, sem nenhum valor comercial”, para serem estudados no SMNK. Não havia qualquer especificação do material contido nas caixas, de forma que Frey poderia lançar mão daquele documento para justificar o transporte de qualquer fóssil do Araripe que estivesse em sua coleção. Ao ser indagado pela revista Science sobre o fóssil, em 2020, ele disse que o material tinha chegado à Alemanha de forma legal, embora não tivesse como prová-lo.

O documento que autorizava o transporte dos fósseis para Karlsruhe também não especificava quais instituições brasileiras estariam envolvidas no estudo do material, outra exigência da lei ignorada pelos cientistas que descreveram o Ubirajara. A autorização foi assinada por José Betimar Melo Filgueira, na época chefe do escritório do DNPM na cidade cearense do Crato, no Cariri, e hoje aposentado. Em 2015, o funcionário foi condenado por improbidade administrativa, envolvido num “grande esquema de fraudes” com a emissão indevida de certificados de autenticidade de pedras preciosas.

Quando o caso do Ubirajara veio à tona, no fim de 2020, Betimar disse à agência de notícias Sputnik Brasil que havia vistoriado o material coletado por Frey e “não tinha nada que não fosse comum no nosso dia a dia”. Mas sugeriu que Frey teria colocado o fóssil do dinossauro na caixa depois da vistoria, ou que a peça tivesse ido parar na Alemanha numa data posterior à da autorização.

No entanto, de acordo com a lei brasileira, cabe unicamente ao Ministério da Ciência a prerrogativa de autorizar ou não a exportação de um fóssil. Os funcionários da ANM “não têm poder de determinar para quem vai um fóssil ou de dar autorização de transporte dentro ou fora do país”, disse à piauí a paleontóloga Taissa Rodrigues, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Além da legitimidade da autorização, Rodrigues questionou a complacência do museu de Karlsruhe ao se dar por satisfeito com um documento tão genérico. “Que alemães são esses que aceitam uma cartinha daquelas?”

O museu de Karlsruhe guarda em seu acervo os holótipos de duas espécies do Araripe batizadas em homenagem a funcionários do DNPM ou da ANM, responsáveis por fiscalizar a coleta de fósseis no Cariri. A centopeia Velocipede betimari é uma deferência a Betimar e a tartaruga Araripemys arturi homenageia Artur Andrade, chefe do escritório regional da ANM no Crato. Ambas foram descritas por David Martill, que também estudou o Ubirajara jubatus.

Taissa Rodrigues estranhou que os espécimes em homenagem aos funcionários públicos brasileiros sejam justamente holótipos que estão na Alemanha e não fósseis que ficaram no Brasil. “Isso não é ético”, afirmou a pesquisadora. Para o paleontólogo Álamo Saraiva, pesquisador da Universidade Regional do Cariri (Urca), a homenagem sinaliza um conflito de interesses entre os fiscais e os cientistas que eles deveriam fiscalizar. “É como se Fernandinho Beira-Mar batizasse um filho em homenagem a um juiz federal”, comparou. “Indica uma amizade suspeita entre eles.”

Ao ser perguntado pela piauí a respeito dessa homenagem, Artur Andrade afirmou que se tratava de um agradecimento por ele ter ido a campo com Martill – a fim justamente de fiscalizar a coleta de fósseis. Disse ainda que é um gesto corriqueiro na ciência. “Se receber essa homenagem for crime, tem um bocado de criminosos na paleontologia”, disse. Já Betimar – o outro funcionário da ANM homenageado – alegou que está “levando [sua] aposentadoria a sério” e não quis dar entrevista. “Não tenho tratado de assuntos relacionados a fósseis”, afirmou. “Esse assunto morreu para mim.”

 

Em setembro de 2021, nove meses depois do início da polêmica, o museu alemão respondeu a um pedido de repatriação que havia sido feito pela Sociedade Brasileira de Paleontologia. Informou que não devolveria o Ubirajara porque o fóssil tinha chegado a Karlsruhe antes de 2007, quando a Alemanha assinou uma convenção da Unesco que combate o comércio ilegal de bens culturais. O posicionamento dos alemães motivou uma segunda onda de mobilização dos internautas brasileiros, marcada por uma chuva de comentários provocativos aos posts do SMNK nas redes sociais.

O museu achou por bem soltar um comunicado público dizendo que o estado de Baden-Württemberg era o dono legítimo do dinossauro do Araripe e que o fóssil estava preservado ali para a posteridade. “Não foi a melhor estratégia de marketing, porque em menos de duas semanas eles tinham mais de 10 mil comentários não muito educados”, disse Cisneros num congresso de paleontologia. O museu então fechou a caixa de comentários de posts antigos e afirmou que apagaria observações sobre o Ubirajara em postagens não relacionadas com o tema. Mas as medidas não bastaram para conter a indignação dos brasileiros e o SMNK chegou a tirar momentaneamente do ar sua conta no Instagram.

Semanas após o segundo pico da mobilização popular, a Cretaceous Research decidiu despublicar de vez o artigo que descrevia o Ubirajara jubatus (o estudo já havia sido tirado provisoriamente do ar na véspera do Natal de 2020, onze dias após a publicação, em resposta à campanha lançada nas redes sociais). “A revista tomou a decisão de retirar permanentemente o artigo de circulação, dado que as preocupações que havia em relação à exportação do espécime continuaram sem resolução nove meses após a publicação inicial”, afirmou a Elsevier, editora responsável pela revista, em nota enviada à piauí.

Tirar um artigo de circulação não é uma medida incomum por parte das editoras. É um recurso usado geralmente para corrigir erros de boa-fé ou eliminar estudos fraudulentos. A descrição do Ubirajara tinha suas fragilidades técnicas, que foram apontadas num artigo escrito por 25 paleontólogos brasileiros. Segundo eles, os autores do estudo não fizeram testes suficientes para comprovar algumas interpretações que deram ao fóssil. Análises mais detalhadas, usando métodos como a microscopia por varredura de elétrons, poderiam resolver as dúvidas. “Não dá para falar que o bicho tem determinada estrutura e ficar só na palavra dos autores”, alegou Taissa Rodrigues, a primeira autora do artigo de refutação, que não chegou a ser publicado. “A gente esperava um pouco mais de rigor.”

Não foi por problemas científicos, porém, que o artigo dos cientistas alemães foi cancelado, mas sim por questões legais, e isso foi uma novidade do caso Ubirajara. “É um divisor de águas”, disse o paleontólogo Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, à piauí. Além de retirar o artigo, a Cretaceous Research anunciou que, dali em diante, deixaria de aceitar artigos sobre fósseis de procedência incerta, com suspeita de contrabando ou pertencentes a coleções privadas. Com isso, alinhou-se à postura linha-dura já adotada por periódicos como Science ou Nature, e que está ajudando a questionar a validade dos fósseis de procedência duvidosa. “As revistas científicas são um ponto-chave para barrar o estudo de fósseis tirados ilegalmente do país”, disse a paleontóloga Juliana Sayão, também do Museu Nacional.

 

Na mesma época em que disseram que o Ubirajara não seria devolvido, os alemães mudaram de versão em relação à procedência do fóssil. Um porta-voz do Ministério da Ciência, Pesquisa e Arte do estado de Baden-­Württemberg, que administra o museu de Karlsruhe, declarou à revista Science que o Ubirajara não tinha sido levado à Alemanha por Frey em 1995. Em vez disso, tinha sido “importado” por uma empresa em 2006 e adquirido em 2009 pelo SMNK. O comunicado era uma admissão de que Frey e seus colegas haviam mentido no artigo de 2020.

Dez meses se passaram até que o Conselho de Ministros de Baden-Württemberg decidisse que o smnk deveria devolver ao Brasil o fóssil do Ubirajara jubatus. Acatou, com isso, um pedido de Theresia Bauer, ministra da Ciência, que considerou se tratar de um caso de “má conduta científica inaceitável” por parte dos paleontólogos, conforme relatou o jornal Badische Neueste Nachrichten (BNN). De acordo com a decisão, o SMNK e outros museus daquele estado terão que averiguar se há em seu acervo outros materiais adquiridos em circunstâncias pouco claras. “Se houver objetos nas coleções de nossos museus que foram incorporados em condições legal ou eticamente inaceitáveis, nós vamos devolvê-los”, declarou Bauer ao BNN.

Quase um ano se passou entre o anúncio da ministra e a devolução do fóssil. O Ubirajara voltou, mas não há qualquer outra repatriação prevista da Alemanha. A piauí quis saber do ministério conduzido por Bauer se os museus de Baden-Württemberg já haviam passado um pente-fino em suas coleções e identificado mais algum objeto elegível para devolução. Em nota, a instituição respondeu que os museus do estado fizeram um inventário de suas coleções e que, “até agora, não há outros casos envolvendo uma possível devolução ao Brasil”.

As tratativas para a devolução do fóssil envolveram o Itamaraty e o Ministério da Ciência, do lado brasileiro, e a Embaixada da Alemanha no Brasil. A instituição inicialmente cotada para receber o Ubirajara foi o Museu Nacional, que tenta agora recompor seu acervo, após o incêndio de 2018 que destruiu 80% de suas coleções. Muitos paleontólogos ficaram frustrados quando essa notícia circulou, por entender que a decisão continuaria privando o Cariri dos benefícios que o fóssil poderia trazer, reproduzindo em escala doméstica o colonialismo que eles estavam denunciando. O Museu Nacional veio a público declarar que não tinha interesse em receber o dinossauro, desfazendo a saia justa.

A nova casa do Ubirajara é o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, que fica em Santana do Cariri, um município de 17,7 mil habitantes. A instituição foi fundada nos anos 1980 pelo cientista que lhe empresta o nome e que foi prefeito do município. Com a criação do museu, Nuvens pretendia que os fósseis da Bacia do Araripe beneficiassem a população local. “Plácido foi um visionário”, disse Álamo Saraiva, ex-diretor do museu, para quem a atuação de Nuvens ajudou a segurar naquela região muitas pessoas que teriam migrado em busca de vida melhor. “Ele criou essa identidade para o povo do Cariri e hoje a cidade vive basicamente em função do museu.”

Instalado em uma casa de dois pisos, o museu recebe 45 mil visitantes por ano, dos quais 80% são crianças de escolas de todo o Nordeste. A exposição tem centenas de répteis, peixes, insetos, plantas e outros organismos que viveram ali no Cretáceo. Termina numa sala ampla com a réplica em tamanho real de dois dinossauros e um pterossauro do Araripe. Recentemente, o museu ganhou armários de aço deslizantes para armazenar suas coleções, do tipo que Felipe Pinheiro não viu no SMNK em 2012. O telhado está sendo renovado e a iluminação, refeita. Outra melhoria em perspectiva é a aquisição de um tomógrafo para a análise de fósseis, instrumento que poucos museus brasileiros têm.

A instituição do Cariri não deixa nada a desejar em relação a equivalentes do mesmo porte no interior da Inglaterra, me disse Aline Ghilardi – a cientista que lançou a hashtag #UbirajaraBelongs­ToBR –, durante uma visita ao museu em novembro passado, por ocasião de um encontro regional de paleontólogos do Nordeste. “Mas o museu vai muito além da exposição, temos que olhar também para o significado cultural desses fósseis, e vem daí sua importância.”

Allysson Pinheiro, o diretor do museu que foi receber o Ubirajara no aeroporto, contou que, por serem tão abundantes naquela região, os fósseis foram incorporados ao imaginário da população. “Eles estão nas rendas, nas cantigas, são um traço identitário do povo do Cariri.” Expostos no museu, reforçam essa identidade e fazem girar a economia: mesmo que a visita seja gratuita, os visitantes gastam com transporte, alimentação, hospedagem e lazer. “O Ubirajara vai ser um atrator de turismo e um motor de desenvolvimento regional.” Pinheiro acrescentou que o Cariri fica no centro do semiárido e enfrenta desafios socioeconômicos imensos. “Os fósseis podem ser a chave para ajudar a mudar essa realidade.”

A dimensão cultural dos fósseis, no entanto, ainda não foi legalmente reconhecida no Brasil, conforme disse à piauí o procurador Rafael Rayol, do Ministério Público Federal no Ceará. “Pe­la legislação brasileira, os fósseis ainda são classificados formalmente como bens minerais, assim como o calcário ou a areia”, afirmou Rayol. Se fosse denunciado e condenado, o contrabandista do Ubirajara estaria sujeito a uma pe­na curta, de 1 a 5 anos de prisão. “É a mesma punição para quem furta granito da União”, comparou o procurador, que defende que a lei seja atualizada para reconhecer os fósseis como patrimônio cultural.

 

O Ubirajara virou mascote de uma causa que vem ganhando adeptos não só entre os cientistas. “É um bicho do tamanho de uma galinha, mas de um simbolismo enorme para a luta decolonial”, disse Juan Cisneros, professor da UFPI que fez da decolonização da paleontologia sua principal bandeira. Nascido em El Salvador, Cisneros se naturalizou brasileiro em 2021 – e o Ubirajara pesou nessa decisão, como ele contou à piauí. “Senti que, não sendo brasileiro, poderia ser criticado por lutar por um fóssil brasileiro”, disse o cientista, que mora em Teresina desde 2010.

O colonialismo está na base da empreitada museológica. Atualmente, 73 dos maiores museus de história natural do mundo reúnem 1,1 bilhão de itens, de acordo com um levantamento recente feito com instituições de 28 países (incluindo países em desenvolvimento). Cientistas e ativistas cobram a devolução de parte desse acervo, que inclui material trazido das colônias europeias nas Américas, na África, Ásia e Oceania.

Cisneros contou que a primeira espécie extinta a receber um nome científico foi o Megatherium americanum, uma preguiça-gigante cujo esqueleto foi encontrado no final do século XVIII na Argentina, às margens do Rio Luján, um afluente do Rio da Prata. O fóssil foi enviado ao Museu Nacional de Ciências Naturais, em Madri, e lá continua até hoje. Para Cisneros, deveria ser devolvido à Argentina, onde estimularia a pesquisa e a economia local. “Esse é um fóssil muito importante porque inaugura a paleontologia como ciência”, afirmou. “Se isso não é colonialismo, não sei que nome vai ter.”

O professor da UFPI e seus colegas denunciam a forma como as relações de poder se reinventaram na ciência atual: muitos cientistas dos países desenvolvidos vão aos países em desenvolvimento buscar o material que lhes interessa e raras vezes procuram colaborar com os pesquisadores locais – quando não ignoram as suas leis, como aconteceu com o Ubirajara e tantos outros fósseis brasileiros. O resultado disso é um aumento na desigualdade entre a ciência dos países ricos e pobres. “A gente funciona como fornecedor de dados, que são como commodities”, disse Aline Ghilardi, da UFRN. “Não são mais os caras que chegam aqui com uma caravela e levam ouro, é uma atualização do colonialismo.”

Em 2021, Ghilardi, Cisneros e onze colegas publicaram na revista Royal Society Open Science um artigo denunciando as práticas colonialistas na paleontologia, no Brasil e no México. Eles fizeram um levantamento de 71 artigos científicos que descreviam espécies de plantas e animais vertebrados do Cretáceo encontrados na Bacia do Araripe. Constataram que 57% dos estudos não tinham sido feitos em colaboração com cientistas brasileiros, e que 88% dos fósseis usados na descrição de novas espécies – os holótipos – estavam guardados em uma instituição estrangeira. A maioria dos estudos não trazia uma explicação convincente da procedência do material e nenhum deles mencionava qualquer autorização de exportação.

A maior parte do material do Araripe catalogado pelos autores do levantamento estava na Alemanha, onde havia pelo menos noventa holótipos. Só no museu de Karlsruhe estão dez animais vertebrados – agora nove, com a devolução do Ubirajara. No Museu de Ciências Naturais de Berlim, há treze holótipos de plantas, e no Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, ao menos 47 insetos, aranhas e outros invertebrados que saíram ilegalmente do Brasil. De acordo com Cisneros, o interesse de curadores desses museus pelos fósseis do Nordeste é o que explica a grande quantidade de espécimes na Alemanha. Mas há fósseis brasileiros também no Reino Unido, nos Estados Unidos, no Japão e em outros países.

O museu de Berlim abriga outro caso emblemático de colonialismo na paleontologia: o Giraffatitan brancai, o mais alto dinossauro em exposição no mundo. Trata-se de um gigante pescoçudo que podia passar de 22 metros de comprimento e 13 metros de altura. O animal foi escavado no começo do século XX no sudeste da Tanzânia, que era então uma colônia alemã. “Por que as pessoas têm que ir a Berlim para ver esse bicho?”, questionou Cisneros. Para ele, o lugar do esqueleto deveria ser a Tanzânia. “Você poderia ver o Kilimanjaro e o maior dinossauro do mundo na mesma viagem. Deveria ser assim.”

O estímulo que os fósseis de grande apelo estético poderiam dar à economia dos países em que foram encontrados é um dos principais argumentos pela repatriação. Cisneros foi um dos paleontólogos que denunciou ao Ministério Público Federal, em 2014, a venda de um esqueleto quase completo de um pterossauro no eBay por 262 mil dólares, o equivalente a 1,6 milhão de reais em dinheiro de hoje. O professor da UFPI se espantou com o preço cobrado pelo fóssil. “Se você pesar o bicho, verá que sai mais caro que cocaína”, comparou. Quem contrabandeou aquele fóssil sabia do seu valor. “Obviamente essa quantia não vai para um pedreiro do Cariri, que deve ter vendido a peça por uma mixaria”, disse Cisneros. “Não são as pessoas humildes que se beneficiam, mas os vendedores da Europa.”

 

A capacidade de os países em desenvolvimento conservarem os fósseis em condições adequadas é frequentemente questionada por aqueles que se opõem à repatriação do material. No caso do Ubirajara, o argumento foi empregado por David Martill, um dos cientistas que descreveram a espécie. “Se esse espécime estivesse no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, agora ele seria um monte de cinzas”, declarou o paleontólogo britânico, em 2020, à revista Galileu, primeiro veículo brasileiro a noticiar o caso.

A destruição do Museu Nacional não foi a única tragédia do tipo no Brasil nos últimos anos. Em 2020, um incêndio consumiu a maior parte do acervo do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, em Belo Horizonte, destruindo tesouros paleontológicos e arqueológicos brasileiros. Incêndios atingiram também instituições culturais como o Museu da Língua Portuguesa, em 2016, e um galpão da Cinemateca Brasileira, em 2021, ambos em São Paulo.

O argumento, repetido por Martill em outras entrevistas desde então, enfureceu os cientistas brasileiros que defendiam a devolução do fóssil. No Twitter, Aline Ghilardi lembrou que centenas de fósseis foram destruídos em bombardeios durante a Segunda Guerra. O próprio SMNK, em Karlsruhe, foi alvejado em 1942 e perdeu vários itens de seu acervo. Dentre o material dizimado no conflito mundial, estava provavelmente o holótipo do Gryposuchus jessei, um parente extinto dos crocodilos modernos que tinha sido encontrado no Oeste do Amazonas e estava abrigado num museu de Hamburgo.

O incêndio de 2019 que destruiu boa parte do telhado da Catedral de Notre-­Dame, em Paris, costuma ser citado pelos cientistas brasileiros como prova de que o patrimônio cultural dos países desenvolvidos também está vulnerável a esse tipo de acidente. Citei o caso para David Martill, quando ele mais uma vez mencionou os incêndios que afetaram museus brasileiros na entrevista que deu à piauí em janeiro deste ano. “A diferença é que, quando os bombeiros franceses chegaram, os extintores funcionaram”, alegou o britânico, aludindo à falta de água que prejudicou o combate ao fogo no Museu Nacional. “Não quero soar grosseiro, mas sempre que coletei fósseis no Brasil eu sentia que o material estaria mais seguro em coleções alemãs ou britânicas, e o incêndio do Museu Nacional provou que eu estava certo.”

O Museu Nacional abrigava muitos fósseis da Bacia do Araripe que se perderam para sempre. Parte do material pode ter sido recuperada, mas ainda não há informações consolidadas sobre o que foi possível resgatar. O diretor da instituição, Alexander Kellner – ele próprio estudioso dos répteis extintos do Araripe –, reconheceu as perdas inestimáveis. “O Museu Nacional não soube cuidar do seu acervo, ficou muito feio”, disse Kellner à piauí. “Temos essa responsabilidade, mas isso não justifica o roubo de fósseis do Brasil.”

Estudioso dos animais encontrados na Bacia do Araripe, Martill foi coorganizador de um livro de referência sobre os fósseis da região. Veio ao Brasil pela primeira vez em busca de fósseis em 1988, e trabalhou no país ao longo de duas décadas, fazendo às vezes mais de uma viagem por ano. Disse que se encantou pela qualidade do material, muito bem preservado nos terrenos da região. Fazia suas escavações munido de documentos do DNPM que o autorizavam a levar os fósseis para a Inglaterra, com a condição de que fossem usados para ensino e pesquisa, e não para fins comerciais. “Até onde alcanço, eu estava trabalhando dentro da lei”, afirmou. O britânico já descreveu várias espécies do Araripe que foram parar em museus estrangeiros. Por temer complicações com a Justiça, decidiu que não virá mais ao Brasil e hoje se limita a estudar os fósseis locais armazenados em coleções no exterior.

Martill disse ter visto o Ubirajara jubatus pela primeira vez quando o fóssil já estava nas coleções do museu de Karlsruhe. Ele não soube determinar a procedência do material. “Não tenho lembrança de tê-lo visto antes dessa ocasião, mas não me recordo de cada um dos fósseis que coletamos anos atrás”, afirmou. “Tenho quase certeza de que foi comprado.”

No Brasil, Martill é conhecido também pelas declarações polêmicas que inflamam os cientistas locais. Ele foi um dos autores de um estudo que descreveu em 2015 uma suposta cobra de quatro patas que viveu na Bacia do Araripe durante o Cretáceo (um estudo posterior contestou a interpretação e alegou que se tratava, na verdade, de um lagarto). Na época, o paleontólogo foi questionado por não ter envolvido cientistas brasileiros no estudo do fóssil, como determina a lei. “Que diferença faria?”, questionou Martill, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Você também quer que eu tenha uma pessoa negra na equipe por questões étnicas, e um deficiente, uma mulher e quem sabe um homossexual também, apenas por uma questão de equilíbrio?”

Martill é contrário às leis de países como o Brasil, a Itália ou a China, que proíbem o comércio dos fósseis encontrados em seu território. Para ele, a legislação restritiva prejudica a ciência, pois estimula que material de grande interesse paleontológico não seja coletado e se perca. É o oposto, segundo ele, do que ocorre no Reino Unido, cujos museus estão repletos de fósseis, porque a comercialização e a coleta são permitidas no país, desde que autorizadas pelo proprietário das terras em questão. O paleontólogo acredita que os espécimes que pertencem a coleções particulares irão parar cedo ou tarde no acervo de museus, como argumentou num artigo de 2018: “[O fóssil] ficou enterrado por 125 milhões de anos, indisponível para estudo, alguns anos a mais não vão fazer mal a ninguém.”

O paleontólogo britânico lidera a lista de cientistas estrangeiros que apresentaram a primeira espécie de dinossauro descrita a partir de um fóssil da Bacia do Araripe, o Irritator challengeri. Publicado em 1996 no Journal of the Geological Society, o artigo foi assinado também por Eberhard Frey e três colegas do Reino Unido. Tratava-se de um fóssil que tinha saído ilegalmente do Brasil e que foi parar na coleção do Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, a pouco mais de 60 km de Karlsruhe. No artigo, os autores informaram que o espécime foi comprado, sem dar mais explicações.

O detalhe curioso dessa descoberta é que os autores compraram um fóssil que tinha sido adulterado de forma a parecer mais impressionante do que de fato é. Apenas a parte posterior do crânio era legítima; a outra metade foi forjada pelos traficantes, com gesso e pedaços de osso do mesmo animal, para dar a impressão que se tratava de um crânio completo. Os cientistas ficaram furiosos ao descobrir a farsa quando estavam preparando o fóssil e decidiram eternizar sua irritação no nome escolhido para o bicho.

O Irritator voltou às manchetes em maio deste ano, quando foi publicado um estudo que, a partir de uma tomografia do crânio, concluiu que se tratava de um dinossauro mais rápido e versátil do que os cientistas acreditavam até então. Assim como aconteceu no caso do Ubirajara, os paleontólogos brasileiros protestaram nas redes sociais e a revista Palaeontologia Electronica decidiu despublicar o artigo.

 

Um dos mais emblemáticos pedidos de repatriação de patrimônio cultural de países em desenvolvimento é o caso dos bronzes de Benin – um conjunto de milhares de estátuas, placas e outros artefatos fabricados com metais variados a partir do século XIII pelos habitantes do reino do Benin, onde hoje fica o Sul da Nigéria. Saqueada por britânicos em 1897, boa parte das peças foi parar em museus da Europa e dos Estados Unidos.

A Nigéria reivindica a repatriação dos bronzes desde sua independência, em 1960. Nos últimos anos, uma série de museus e outras instituições vêm se comprometendo a devolver as peças. Em 2021, o governo alemão disse que restituiria os mais de mil bronzes que estão no país; até agora, apenas 22 peças foram devolvidas. Instituições britânicas, como as universidades de Cambridge, na Inglaterra, e de Aberdeen, na Escócia, e o Museu Horniman, de Londres, também já devolveram um número modesto de artefatos.

O Museu Britânico, em Londres, detém a maior coleção de bronzes do Benin, com cerca de novecentos itens – e até agora não deu sinal de que poderia devolvê-la. A instituição abriga também a Pedra de Roseta, que permitiu decifrar os hieróglifos egípcios há duzentos anos, e os Mármores de Elgin, esculturas que faziam parte do Partenon, em Atenas, e foram levadas para o Reino Unido no século XIX. O museu costuma se defender citando uma lei dos anos 1960 que o impede de se desfazer de peças de sua coleção. “Daqui a vinte anos, o Museu Britânico será visto como a caverna de Ali Babá, e não como uma instituição que propaga a cultura, a igualdade e os direitos humanos”, declarou a egiptóloga Monica Hanna, da Academia Árabe de Ciência, Tecnologia e Transporte Marítimo, em entrevista ao podcast The Inquiry, da BBC.

Em junho, o Nationalmuseet, museu nacional da Dinamarca, anunciou que devolverá um dos cinco mantos tupinambá incorporados à sua coleção no século XVII. Os mantos são considerados sagrados pelos indígenas, e há apenas outros seis conhecidos no mundo, todos na Europa. Em outro museu de Copenhague, estão fósseis de humanos e mamíferos extintos coletados em Lagoa Santa (MG) no século XIX pelo naturalista dinamarquês Peter Lund, pioneiro da arqueologia e da paleontologia nas Américas. Não há negociações em curso para repatriá-los.

A polêmica em torno do Ubirajara já motivou o retorno de outros fósseis. Foi o caso da Cretapalpus vittari, uma aranha de cerca de 1 cm que viveu na Bacia do Araripe no Cretáceo e foi batizada em homenagem à cantora Pabllo Vittar, de quem é fã Matthew Downen, paleontólogo que a descreveu. O holótipo foi estudado por pesquisadores da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, e estava abrigado no Museu de História Natural da instituição. Quando a espécie foi descrita no periódico The Journal of Arachnology, em maio de 2021, a campanha em torno da devolução do Ubirajara já tinha provocado bastante rebuliço pelo mundo afora, e os paleontólogos brasileiros também apontaram nas redes sociais a ilegalidade da aranha do Cariri que estava no Kansas. Após a controvérsia, os norte-americanos decidiram voluntariamente devolver o bicho ao Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.

Do lado brasileiro, a negociação dessa operação foi feita pelo paleontólogo Renan Bantim, professor da Universidade Regional do Cariri e um dos curadores do museu local. “Entre a publicação do artigo e a reunião com os norte-americanos para negociar a devolução, passaram-­se no máximo duas semanas”, contou Bantim à piauí. Junto com a Cretapalpus, os paleontólogos do Kansas enviaram outras 35 aranhas coletadas na mesma ocasião, cuja existência era ignorada pelos brasileiros. O material tinha sido escavado em 2003 pelo paleontólogo Paul Selden, um dos autores do artigo. Ele sabia que era ilegal comprar fósseis, mas desconhecia que também era guardar o holótipo fora do Brasil, disse Bantim.

O material foi devolvido em outubro do ano passado. “As aranhas foram embaladas numa caixa grande que veio por FedEx e foi entregue direto na porta do museu em Santana do Cariri”, afirmou o paleontólogo brasileiro. A Cretapalpus vittari ficou em exposição na instituição por alguns meses com uma etiqueta que explicava a sua importância simbólica. Hoje está guardada no acervo técnico do museu.

Outra repatriação que está encaminhada é a de 998 fósseis que virão da França. Nesse caso, porém, não se trata de espécimes que estavam na coleção de museus, mas sim de peças descobertas em um contêiner por funcionários da alfândega do Porto de Le Havre. Dentre os fósseis recuperados, há plantas, insetos, peixes e répteis, incluindo um pterossauro.

A devolução foi decidida após acordo firmado entre o Ministério Público Federal e a Justiça francesa. Em maio do ano passado houve uma cerimônia para oficializar a repatriação, mas os brasileiros que foram participar do evento voltaram de mãos vazias. Mais de um ano depois, os fósseis continuam na França. De acordo com Allysson Pinheiro, que participou da cerimônia, o atraso se deve a entraves burocráticos que agora foram finalmente superados, e o material está prestes a ser devolvido ao Brasil. Será encaminhado para o Museu Plácido Cidade Nuvens.

Se as negociações para a devolução de fósseis que pertencem a coleções institucionais estão caminhando, o caso do material contrabandeado que vai parar em sites de comércio eletrônico é mais complicado. Em janeiro deste ano, Cisneros denunciou ao Ministério Público Federal a loja norte-americana Indiana9 Fossils, que estava vendendo material do Araripe que muito provavelmente saiu do país de forma ilegal.

Ao alardear o caso no Twitter, Cisneros chamou a atenção para o preço de venda dos fósseis – uma cigarra do Cretáceo sai por 3 120 dólares (cerca de 15 mil reais), e uma libélula, por 3,9 mil dólares (cerca de 20 mil reais). “Seguramente foram comprados de uma pessoa humilde pelo valor de uma aguardente”, escreveu. Só há um modo de explicar a saída legal do país: dizendo que ela ocorreu antes de 1942, quando o decreto de Vargas tornou os fósseis propriedade da União. “Vou ter que acreditar que eles vieram fazer uma escavação em 1941, escutando Glenn Miller?”, ironizou o pesquisador.

 

Quando abriu as caixas e se deparou com os fósseis do Ubirajara jubatus no começo de junho, Allysson Pinheiro disse que rememorou num instante toda a sua trajetória na ciência. Pensou também em Plácido Nuvens e na luta para manter os fósseis no Cariri. “Estamos dando passos muito importantes para trazer condições melhores de vida para o pessoal da região”, afirmou. Era uma vitória, ele reconheceu. “Mas só vamos ter a dimensão dela daqui a uns dez anos, com as coisas que a gente espera que esse evento ajude a concretizar.”

Por um lado, continuou o diretor, a devolução do Ubirajara representa um passo importante na discussão sobre como a ciência deve ser feita. “O conhecimento científico é necessário para que as sociedades evoluam, mas não pode negar os limites impostos pelas éticas individuais e coletivas.” Não foi o único saldo positivo deixado pelo episódio, na avaliação de Pinheiro. “Além disso, também começamos a discutir a diminuição de assimetrias regionais quando se fala em ciência.”

Um legado duradouro que deve ficar do episódio é a dificuldade cada vez maior que os pesquisadores estrangeiros terão para estudar fósseis de origem obscura. Os colegas do exterior não tinham o menor pudor de descrever espécies do Araripe sem comprovar a origem do espécime, como disse Juliana Sayão, do Museu Nacional. “Até que chegamos a este momento em que ficou constrangedor publicar um fóssil do Brasil, porque as pessoas sabem que esse material saiu ilegalmente.” O depoimento de Martill corrobora a visão da paleontóloga carioca. “Os fósseis brasileiros estão ficando tóxicos para os pesquisadores”, afirmou o britânico.

Na avaliação de Felipe Pinheiro, o paleontólogo cearense da Unipampa que passou uma semana no museu de Karlsruhe, o caso do Ubirajara “matou” a coleção da instituição alemã. Os pesquisadores brasileiros que conhecem o acervo não vão ficar quietos se sair um novo estudo desses fósseis. “Se esse material não for repatriado, não vão conseguir publicar mais nada a respeito”, afirmou.

Para Cisneros, os cientistas das instituições estrangeiras que detêm fósseis brasileiros contrabandeados estão ficando sem oxigênio. “Estamos bloqueando todos os caminhos”, disse o cientista. “Eles não vão deixar na gaveta porque pega mal, e não vão publicar porque ninguém aceita.” O retorno dos fósseis brasileiros seria uma questão de tempo. “Eles não têm outra saída.”

 

A devolução do Ubirajara jubatus foi formalizada numa cerimônia no auditório do Ministério da Ciência na tarde de 12 de junho, na presença de autoridades do Brasil e da Alemanha. Representando o museu de Karlsruhe, estava o paleontólogo Julien Kimmig, que substituiu Eberhard Frey na curadoria dos fósseis. Em sua fala durante a solenidade, o alemão disse que a história do Ubirajara e a forma como tinha sido tratado em sua instituição “foram muito infelizes”, e que ele e sua equipe estavam satisfeitos com o retorno.

Em conversa com a imprensa ao final da cerimônia, a ministra da Ciência, Luciana Santos, disse que faria da repatriação de outros fósseis brasileiros uma prioridade de sua gestão. Os alemães, contudo, não deram entrevista. Quando as autoridades estavam se dispersando, perguntei a Kimmig se havia a perspectiva de retorno de outros fósseis abrigados no museu de Karlsruhe. O curador fez uma cara constrangida e disse que não sabia. “Isso é com o ministério [da Ciência, Pesquisa e Arte do estado de Baden-Württemberg].”

Ghilardi e Cisneros, os dois paleontólogos que lideraram a campanha pela repatriação do Ubirajara, foram a Brasília participar da recepção do dinossauro e não se cansavam de tirar selfies à frente dos fósseis. Ao final da solenidade, eles foram a um bar na Asa Norte celebrar a vitória diplomática impulsionada pela campanha nas redes sociais. Enquanto tomavam espumante, discutiram como manter acesa a mobilização em torno da causa. O grupo já definiu a prioridade para repatriação agora que o Ubirajara voltou. “O próximo tem que ser o Irritator”, disse Cisneros, referindo-­se ao primeiro dinossauro do Araripe.

Durante a comemoração, os cientistas também conversaram sobre o futuro dos fósseis repatriados. O dinossauro caiu num limbo taxonômico depois que o artigo com a sua descrição foi cancelado. Para todos os efeitos, é como se a espécie nunca tivesse sido descrita, e o nome Ubirajara jubatus já não tem validade. Com o retorno dos fósseis ao Brasil, o material poderá voltar ser analisado por outros pesquisadores, que terão a prerrogativa de rebatizar o animal – inclusive com o nome original, se assim julgarem adequado.

Ghilardi havia sinalizado o seu interesse em analisar os fósseis antes da devolução e disse que a pesquisa deve envolver outros cientistas interessados. No que depender dela, o primeiro autor da nova análise deve ser, mais uma vez, Robert Smyth, o aluno de Martill que liderou o estudo original do Ubirajara. A disputa em torno do fóssil acabou respingando no paleontólogo em começo de carreira, que não tem culpa por toda a celeuma, alegou Ghilardi. A brasileira vem trocando mensagens com Smyth e disse que ele se mostrou receptivo à ideia de voltar a estudar o material.

Depois da cerimônia em Brasília, o Ubirajara voltou enfim para o Ceará, a bordo do avião que levou o governador do estado, Elmano de Freitas (PT). Antes de chegar à nova casa, os fósseis foram exibidos numa solenidade em Fortaleza e passaram uma temporada na sede da Urca e no Geopark Araripe, ambos na cidade do Crato. Só chegaram ao Museu Plácido Cidade Nuvens na última semana de junho. Ali, poderão ser vistos pelo público apenas durante poucas semanas. “É um holótipo. E a regra básica dos museus é que os holótipos não vão para as exposições, a não ser por curtos espaços de tempo”, disse Allysson Pinheiro. O pequeno dinossauro que abalou o mundo da paleontologia deve ficar exposto nu­ma sala própria no segundo andar a partir de 16 de julho.